[ Artigo especial de Rafa Ribeiro, preparador físico ]
Na manhã de 7 de agosto de 2022, a comunidade do Jiu-Jitsu foi surpreendida com a trágica notícia da morte de um dos maiores vencedores da história da modalidade.
Dotado de um carisma que o fazia virar amigo de um rival e capaz de unir equipes outrora inimigas dentro do mesmo tatame, Lo assim se firmou como uma das figuras mais queridas do mundo das lutas.
O mais louco disso tudo é que, como treinador, eu sempre torcia para que Lo perdesse. Afinal, estive como treinador em pelo menos cinco oportunidades competindo contra ele – foram três com meu atleta Renato Cardoso e duas com Isaque Bahiense.
Bem, simplesmente perdemos as cinco!
Na minha cabeça, eu ficava sem entender como aqueles atletas que trabalhavam comigo perdiam. Além de serem excelentes competidores com um Jiu-Jitsu completo e um poder mental fortíssimo, eles ainda contavam com uma equipe de profissionais especializados em preparação de alto rendimento aplicada ao Jiu-Jitsu – nutricionistas, fisioterapeutas, fisiologistas, coachs como eu, e até psicólogos.
O mais complexo dessa equação de derrotas era saber que Leandro não contava com uma equipe assim, nem fazia quase nada ou absolutamente nada daquilo. E, ainda por cima, adorava dormir tarde e frequentar baladas.
Ouvi relatos de amigos próximos a ele que em diversas oportunidades ele chegava para treinar sem dormir, direto de alguma festa, e treinava bem com todo mundo, amassando os colegas. Como aquilo era possível, eu me perguntava? Alguém aí já tentou treinar nesse esquema de “virote”, isto é, tentar fazer seu melhor sem descansar corpo e mente? Você já sentiu na pele o que é passar uma noite sem dormir ?
O sono é uma potente arma que temos diariamente para aumentar nossa recuperação. Talvez a melhor, e mais barata, eu diria. Vou citar aqui alguns benefícios gerados por uma ótima noite de sono:
* Hidratação dos discos vertebrais
* Liberação do hormônio do crescimento (GH)
* Fortalecimento do sistema imunológico
* Melhora da capacidade de memória e raciocínio
* Diminuição da irritabilidade e estresse
* Regulação dos hormônios que estão relacionados ao apetite
* Rejuvenescimento da pele através da renovação celular
Pois bem, a partir disso o leitor tem agora total noção de alguns efeitos deletérios do que um “virote” pode gerar. Agora, se para uma pessoa normal isso já é ruim, imagine para um atleta de alto rendimento. E pense além: qual seria o impacto disso na atuação de um atleta de elite e supercampeão em plena atividade esportiva?
Na edição #257 da GRACIEMAG, escrevi o artigo “O enigma do gás infinito”. Ali, eu descrevia em dez tópicos o motivo por que o campeão Isaque Bahiense, que treinava comigo à época, mostra tanto “gás”. Eram pontos que quaisquer treinadores que conhecem o mínimo de ciência de esporte entenderiam com facilidade. Ou seja, uma pauta simples, sem nenhum enigma. Curiosamente, na capa daquela mesma edição, havia o Leandro Lo sendo coroado campeão mundial absoluto de 2018. Fiquei pensando que, na verdade, eu poderia ter falado sobre o gás do Lo, pois isso sim é o grande e VERDADEIRO ENIGMA.
Lembro que até uma aposta eu perdi graças ao Lo. No Pan da IBJJF em 2018, eu estava no ginásio e encontrei Leandro no banheiro, passando mal momentos antes de entrar para competir. O detalhe é que ele iria lutar com um cara considerado favorito naquela época, e que havia subido muito bem de categoria, do meio-pesado para o pesado, assim como o Lo. Era hora de Leandro Lo x Keenan Cornelius.
Cheguei até a área de luta para assistir ao grande combate e encontrei o Renato Cardoso. Contei o que havia visto nos bastidores do banheiro, e assumi que por isso não teria jeito, naquele dia iria dar Keenan. Ele estava ferrado minutos atrás, não havia chances para o Lo. Na mesma hora, ao ouvir isso, o Renato retrucou: “Coach, o Lo ganha. Aposto com você”. E foi assim que perdi 20 dólares.
Leandro Lo, além de passar a guarda mais complicada do Jiu-Jitsu naquela época, ainda foi campeão no peso e no absoluto. Analítico e científico que sou, fiquei a me perguntar, como aquilo era possível?
Foi criado até um jargão para explicar como ele vencia fazendo quase tudo “errado”, ou ao menos o contrário de todos atletas olímpicos e profissionais: “Mas é o Lo, né!”. E foi aí que entendi tudo. Leandro Lo era um em um bilhão.
Nosso campeão provava que era um cara genial e único. Um verdadeiro lutador fora da curva, ou “outlier”, como se diz lá fora. A palavra “outlier” é usada em artigos científicos quando algum integrante da amostra sai muito da média em que os demais se encontram. Afinal, um dos objetivos da ciência é verificar em que zona você deve estar para alcançar melhores resultados.
Mas há sempre os extraordinários, os atípicos, os fora da curva. E com os “outliers” tudo é diferente. Imagine você poder comer hambúrguer, tomar refrigerante à vontade e emagrecer de modo saudável. Ou ainda, você poder fazer agachamento e supino e em nada mudar a sua força ou os seus músculos. Estranho, certo? Contudo, todos os grandes fenômenos do esporte são na verdade outliers: Jordan, Federer, Pelé, Brady, Phelps e Bolt. E aqui entra um erro comum: quando os mortais tentam replicar o que esses outliers fazem, achando que assim seremos ou produziremos novos campeões ou até mesmo futuros fenômenos.
Acontece que “outliers” não seguem a lógica. Então, provavelmente, o que eles fazem funcionam apenas para eles – e se você tentar reproduzir, vai falhar. A metodologia Lo, portanto, provavelmente só servia para ele.
Ter um outlier no esporte, na minha visão, é algo vital e benéfico. Muitos odeiam quando alguma coisa ou alguém vai contra as suas ideias e coloca em dúvida suas próprias crenças. Ser contestado é algo doloroso e ninguém gosta de sentir isso. Porém, você pode enxergar pelo prisma do aprendizado e ganhar com a situação. Perder para Leandro Lo era horrível, ilógico, e eu ficava bem chateado. Mas sempre vi aquilo como uma oportunidade de aprender um lado novo no esporte, voltar na semana seguinte aos treinamentos e tentar fazer melhor a cada vez.
Na última das três lutas entre Renato Cardoso e Lo, a derrota veio mas por muito pouco. Aprendi a evoluir com aqueles ensinamentos, com aspectos que questionam o que nós sabemos, com os detalhes que nos levam à derrota.
E aprendi, por último, que uma derrota é diferente de uma perda. Perda é algo irreparável.
Uma das coisas que ficam claras para mim como treinador, hoje, é que grande parte do sucesso de Leandro Lo estava justamente no estilo de vida que ele levava. Aquilo o deixava feliz e completo, e ninguém faz ideia do tamanho da influência da felicidade no rendimento de um atleta.
Leandro fazia com maestria o que chamamos de “mindfulness”, ou completo estado de presença. O ensinamento que virou meta de vida de dez entre dez coachs em suas mentorias. Enquanto grande parte dos treinadores está focado, assim como eu no passado, em discutir se treino de força clássico supera o crossfit para o rendimento no Jiu-Jitsu, ou se o treino periodizado é mais eficiente que outro, hoje o mais razoável é pensar no que deixa o atleta feliz e confortável diante do imenso desconforto que é um ambiente de competição.
É como eu passei a encarar o treinamento hoje. Imaginem colocar o Lo para fazer detalhadamente o que atletas olímpicos fazem? Isso na verdade poderia fazê-lo perder em termos de rendimento. Se o Lo quisesse contratar o treinador Rafa Ribeiro, eu repensaria tudo o que sabia, e diria que em time que está ganhando não se mexe. Ou que talvez aquele investimento dele fosse desnecessário, ou melhor, que poderíamos propor apenas pequenas mudanças como teste.
Afinal o certo é vencer e ser feliz, independente do que a ciência do esporte diz atualmente, mesmo porque os estudos mudam e evoluem. No dia em que atletas e treinadores entenderem essa relação, vão sim dar um salto imenso nos resultados.
A partida de Leandro Lo deixa uma imensa tristeza. Porém, você prefere enxergar e carregar a dor e a tristeza da saudade ou agradecer por todo o seu legado, com as lições e aprendizados que ele nos deixou até o último dia?
Os tatames do mundo inteiro sentirão muito a sua falta.
Descanse em paz, campeão.