A temporada 2024 será de alegria para os pauteiros e jornalistas.
Entre as datas redondas e comemorativas, o noticiário há de lembrar os 40 anos da famigerada Noite das Artes Marciais no Maracanãzinho, com o vale-tudo entre Marco Ruas e Fernando Pinduka em 1984; os 30 anos do primeiro Campeonato Brasileiro de Jiu-Jitsu oficial da CBJJ, em 1994; e, ainda, os dez anos do último dos seis clássicos duelos entre os “arqui-amigos” Marcus Buchecha e Rodolfo Vieira, no Mundial 2014. E, claro, o aniversário de 20 anos da luta que fez parar o mundo do Jiu-Jitsu.
Sim, a sempre citada “final do braço quebrado”.
Mas você ainda lembra os detalhes daquela decisão pelo ouro absoluto, ocorrida há duas décadas? E por que aquela final ainda hoje é considerada por atletas e comentaristas como a mais emocionante da história do Jiu-Jitsu competitivo?
Era o início da noite de 25 de julho de 2004. No ginásio apinhado, com altas feras do MMA presentes, os dois melhores lutadores daquela edição do Mundial davam pulinhos antes da decisão da medalha de ouro.
A história daquela luta havia começado alguns anos antes. Mais precisamente no Campeonato Mundial 2002, quando ambos eram vistos como grandes apostas na faixa-marrom. E ambos, por acaso, lutadores da escuderia Gracie Barra.
As semelhanças entre Roger Gracie Gomes e Ronaldo “Jacaré” Souza, contudo, pareciam terminar ali.
O Gracie fora criado desde bebê nos tatames cariocas, filho de um dos grandes campeões do time de Rolls Gracie, o peso pesado Maurição, com a culta pesquisadora, historiadora e editora de arte Reila Gracie.
O pequeno Ronaldo nascera em Vila Velha, no Espírito Santo, e até os 15 anos era no máximo um bom goleiro nas peladas, onde começou a gostar de rolar no chão. Contudo, as brincadeiras acabaram quando ele viu um colega tomar um tiro em Cariacica. Sua mãe não quis saber e o enviou de imediato para a casa de seu irmão Renato, em Manaus, onde Jaca conheceu o judô e o Jiu-Jitsu aos 17 anos, e passou a dormir na academia ASLE.
A gana de vencer e a raiva da derrota passaram a ser, então, um ponto em comum entre os lutadores. Tanto que, já na faixa-azul, ambos já haviam se tornado personagens de matérias nas páginas de “GRACIE Magazine” – Roger, ao vencer o Mundial azul no ano 2000; Jacaré, ao se destacar no mesmo ano em torneios menores no Amazonas. Na faixa-roxa, os dois já seriam aplaudidos no Tijuca por torcedores e mestres mais atentos.
Ao se cumprimentarem com a faixa-marrom na cintura, na final do Mundial absoluto de 2002, eles nem discutiram se “fechavam a chave” ou lutavam. Cada um deles queria aquela peça de ouro, não importava se eram da mesma bandeira. E lutaram. Para valer. Uma guerra que ofuscou muita luta de faixa-preta. Roger venceu Jacaré por 4 x 2 no Tijuca, em duelo frenético e com alta carga de eletricidade.
Pegue a pipoca ou o açaí e relembre a final do absoluto marrom, a seguir.
Em 2003, Jacaré então ficou mais um ano de “recuperação” na marrom, por desejo de seu mestrão Henrique Machado. Naquele ano, no ADCC no Brasil, os dois já eram estrelas. Ronaldo só perdeu para Saulo Ribeiro, após realizar com Ricardo Cachorrão a melhor luta do evento sem pano, no Ibirapuera. Roger fez um ADCC quase perfeito, eliminando Zé Mario Sperry e ficando com a prata. Um mês depois, no Mundial 2003, Roger perdeu a final do absoluto faixa-preta para Marcio Pé de Pano. Mas Jaca e “Rojão”, claro, só estavam esquentando.
Jacaré ainda passou por um contratempo no fim de 2003, ao tomar um nocaute impiedoso no primeiro Jungle Fight, em sua estreia no vale-tudo (já MMA) contra Jorge Macaco. Será que ele se abalaria? Nada.
No Mundial 2004, os dois tiveram campanhas irrepreensíveis no peso e no absoluto. Na hora da final, enquanto o país parava para assistir a um Brasil x Argentina pelo título da Copa América, os dois apertaram as mãos e o duelo começou.
O Gracie logo puxou para a guarda e logo tentou seu primeiro ataque no braço, bem defendido por Jacaré, que por sua vez conseguiu fazer Roger virar para a posição de tartaruga.
Com Roger deixando as costas expostas, Jacaré não perdeu a oportunidade, e trabalhou com afinco buscando enfiar os ganchos para controlar as costas. O ginásio tremia como se um tufão estivesse estacionado no bairro da Tijuca.
Demorou, mas a fera capixaba radicada no Amazonas finalmente conseguiu. Jaca estava à frente no placar por 4 a 0.
Roger, com a maestria que exibiria por toda a carreira, tratou de defender a tentativa de estrangulamento de Jacaré e conseguiu se virar de frente, até botar novamente o adversário na sua guarda.
Curiosamente, nesse ponto da luta os astros acabaram na posição que, anos depois seria chamada de 50/50. Roger quase conseguiu a raspagem de lá, mas Jacaré conseguiu soltar a perna e se levantar.
Quando a luta recomeçou, Roger mais uma vez tratou de puxar para sua guarda longilínea e perigosa. Desta vez, o Gracie foi preciso. Capturou o braço esquerdo de Jacaré enquanto escalou com as pernas para engatilhar o armlock.
Com seu ombro peso pela pesada perna de Roger, Ronaldo não conseguiu reagir. A ratoeira estalou e o braço estava pego. Deu-se então a guerra acirrada entre os dois – Roger trincando os dentes para encerrar a luta e Jacaré resistindo até o limite. O barulho na arena chegava ao máximo de decibéis.
Jacaré fez o que podia, afrouxando o braço como dava, mas só depois de ouvir os estalos, e ver os ligamentos do cotovelo completamente distendidos e lesionados.
A partir daí, seu braço esquerdo ficou inútil, para baixo, e quando a luta recomeçou Jacaré sabia que estava em apuros.
No minuto e meio que restavam, Jacaré pousou a mão na faixa e evitou claramente o confronto, enquanto Roger, inconformado, buscava mostrar para a arbitragem que Jaca só estava evitando a luta. Os segundos escorreram, o tempo acabou e Jacaré foi declarado campeão absoluto faixa-preta pela primeira vez, num furdunço memorável na arquibancada e arredores.
Enquanto a torcida ainda se recuperava da adrenalina, todos de queixo no chão, Jaca rumou para ser examinado por um ortopedista em uma clínica do Rio de Janeiro. Lá, ele comentaria pela primeira vez o que viveu:
“Decidi na minha cabeça que eu não ia bater e então fiz meu corpo seguir essa decisão”, bufava o novo rei do Jiu-Jitsu. Antes, ainda no ginásio do Tijuca Tênis Clube, Jacaré gritara apenas uma frase para a imprensa sobre a decisão de não desistir, o que lhe custou uma grave luxação do cotovelo, mas nenhuma fratura, como comprovou a radiografia mais tarde naquela noite: “Eu não me arrependo de nada!”
Após ser examinado, Jaca repassou a luta para o GRACIEMAG:
“O Roger é mais habilidoso, mas, irmão, eu entrei na guarda fechada dele, saí, peguei as costas dele! Que luta. E sobre aquela chave de braço, ele não soltou – eu que escapei!”, garantiu, para depois explicar os instantes finais.
“Merda, eu estava vencendo, 4 a 0. Mas aí depois do armlock ele cometeu o mesmo erro muitas vezes ao tentar me derrubar. Tudo o que fiz foi esticar o braço direito e defender o braço esquerdo. Ele deveria ter agarrado meu kimono e puxado para a guarda, o que teria lhe dado uma chance muito maior de raspar e vencer”, concluiu, sem talvez perceber que já estavam, ele e Roger, para sempre na história do Jiu-Jitsu.
Após voltar ao ginásio para pegar seu ouro e sua prata (já que não tinha braço para disputar a final do peso), o campeão daria uma explicação completa: “Meu braço não estava quebrado. Agradeço a Deus por isso! Isso não prejudicará minha carreira. Em duas semanas estarei fazendo flexões, podem anotar aí.”
Jacaré estava quase certo. O braço sararia a ponto de ele voltar a defender seu título no Mundial 2005. Contudo, futuramente, sempre que demorava a se recuperar de alguma contusão entre suas lutas do UFC, ele diria aos jornalistas: “Estou me recuperando desse aqui, é o braço do Roger.”
Em 2005, Jaca voltou a conquistar mais um título absoluto, seu último, mais uma vez contra o arquirrival Gracie. A final do absoluto faixa-preta do Mundial 2005, quase tão aguerrida e parelha, ficou conhecida como a final da “queda na placa publicitária”, e também acabou sob chiado, barulho e vaias.
Roger teria sua revanche somente no ADCC 2005, em Long Beach, com um mata-leão em pé que também ganharia as capas de revistas. Anos depois, com Roger já tricampeão mundial absoluto, os craques voltaram a se encontrar e ficaram amigos, nos tempos áureos do UFC.
Mas essa é uma outra história.