Nada é impossível: como ser mãe e ser campeã mundial de Jiu-Jitsu

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A valente família Canuto. Fotos: Divulgação

Por Rafa Ribeiro, treinador e preparador de Jiu-Jitsu

No Campeonato Mundial da IBJJF em 2022, uma das histórias mais bonitas vistas na Pirâmide de Long Beach foi a dinâmica do casal Jaime Canuto e Amanda Monteiro Canuto, que se desdobraram para lidar com a maternidade recente e a competição acirrada.

Foi fantástico de acompanhar de perto e imagino o quão complexo foi para ambos. Na época, cheguei a publicar, em artigo no GRACIEMAG.com, que eles e a filhota foram três dos destaques do evento.

Tive há pouco a felicidade de ser pai, e só então entendi como esse feito do casal foi inacreditável. Como é possível alguém treinar e se preparar para o campeonato mais importante da modalidade e ainda assim faturar a medalha de prata, a notável condecoração de metal da vice-campeã mundial? Na minha cabeça, somente uma supermãe seria capaz disso.

Dois anos se passaram, e mais uma vez eu estava lá na Pirâmide, para assistir três atletas no Mundial 2024. Esse é um momento que fico intensamente imerso no mundo daqueles três atletas com quem eu estava trabalhando e, portanto, acompanhava as demais notícias apenas de maneira superficial. Meu interesse sempre esteve na preparação deles nos bastidores, e em como poderia ajudar aqueles três a atingir seus picos e chegar na melhor forma possível na hora de competir.

Nas finais da faixa-preta, consegui enfim ver alguns combates, e um em especial chamou minha atenção: a final feminina da categoria pluma. Foi uma batalha travada por duas excelentes atletas e, de tão equilibrada, terminou decidida na decisão dos árbitros. Vitória da estrela Thamires Aquino, e de novo a prata para Amanda, a mãe-atleta de 2022.

Na hora do pódio, lembrei que Thamires é casada com o faixa-preta Italo Lins, professor e empreendedor do mundo do Jiu-Jitsu. Conheci Italo numa viagem para o Mundial, anos atrás, quando ele ainda era atleta. Eles hoje moram nos Estados Unidos e também têm um filho pequeno. Foi nessa hora que me dei conta do ineditismo daquele pódio. Eram duas mães recentes, numa final de Mundial de Jiu-Jitsu da IBJJF, ambas as guerreiras nos dois lugares mais altos do pódio no adulto faixa-preta, a categoria que é a Fórmula-1 da modalidade.

Elas simplesmente alcançaram o topo sendo mães e passando por todo desafio que compreende essa fase na vida de uma mulher.

Para aumentar o meu espanto, encontrei Amanda, logo após sua final, cuidando de sua filha – ainda um bebê! Na minha cabeça, aquela criança já deveria ter pelo menos 3 anos. Antes que eu perguntasse e pudesse ser indelicado, me apareceu o Jaime com um carrinho – com a outra criança. É isso mesmo, eles haviam tido mais uma filha e estavam lá com as duas! A primeira, a de 2022 e a mais nova, nascida em 2023.

A curiosidade me dominou por completo e fiz sucessivas perguntas ao casal sobre como eles faziam, o que eles faziam e quando eles faziam. Eles, dotados de muita simpatia e paciência (guardem bem esses adjetivos), me explicaram em pormenores. Todas as soluções e as estratégias que eles foram criando, para cada situação cotidiana, de fato podem ser bem particulares e por vezes até únicas.

Ouvi atento cada detalhe, como forma de aprendizado, mas espantado a cada resposta. O que deu certo na primeira gestação nem sempre se aplicava para a segunda, e vice-versa. Impressionante o quão desafiador é esse momento, ainda mais para uma atleta de alta performance que precisa atingir o mais alto nível de sua capacidade. E como sempre falei em meus artigos, para atingir o mais alto nível, é necessário muita ciência, organização e planejamento. Itens esses que nem sempre são possíveis nesse universo da maternidade.

As dificuldades são variadas: a logística, dificuldades de tempo, dificuldades com treinamento, dificuldades com sono e com a recuperação. São tantas que na minha cabeça tudo aquilo soava como uma equação inviável. Mesmo com toda disciplina, determinação e motivação, duvido que algum atleta homem conseguiria atingir tamanho feito. E creio que realmente posso afirmar isso, pois treinei diversos campeões mundiais. É isso mesmo, se ser mulher já é algo difícil em todos os sentidos na nossa sociedade, imagina numa modalidade esportiva dominada por homens e que até pouco tempo atrás nem mulheres treinando existia, muito menos competindo.

Agora somem isso ao fato de ser mãe, quando a mulher passa por uma radical transformação corporal, hormonal, mental e de comportamento. É uma fase tão difícil e complexa que muitas mulheres chegam a entrar em depressão no pós-parto, de tão impactantes as mudanças. Aliás, isso é mais comum do que imaginamos. Essa fase é o chamado puerpério. Para piorar, muitas vezes há uma enorme falta de compreensão e entendimento por parte dos homens. Infelizmente, muitos de nós homens tratamos esse momento com uma abordagem rasa, ignorante e reducionista. Existe a equivocada ideia de que essa é apenas uma fase, que toda mulher já passou e que em breve ela estará normal novamente.

Fiquei me perguntando alguns dias como tudo isso seria possível e minha conclusão, longe de ser científica ou embasada em dados, me deu algumas ideias e pensatas. São apenas, repito, uma mera opinião de quem viu de fora, mas ainda assim vou trazer aqui quatro principais pontos que identifiquei nessas mulheres campeãs:

1. RESILIÊNCIA: qualidade criada pelas mulheres, ao longo de suas próprias lutas diárias, diante de cenários sempre desafiadores

2. INSTINTO MATERNAL
, que desenvolve na mulher qualidades e superpoderes que nem mesmo a ciência de hoje consegue explicar

3. PACIÊNCIA para lidar com todas as adversidades e ainda sim continuar firme no propósito.

4. PARCERIA do companheiro que precisa entender a dificuldade do momento e tentar apoiar a mulher em todas as ações ao máximo. Ter, também, uma rede de apoio que são aqueles pessoas com as quais você pode contar para ajudar nas tarefas. Sejam elas as mais simples do dia a dia ou o suporte em viagens.

Vi muitas exibições de impressionar no último Mundial. O polonês Adam, que finalizou todos os seus oponentes com um jogo sólido e efetivo. Meyram, que além de ganhar o peso, ainda fez história sendo o segundo peso-pena na História a medalhar no absoluto – apenas mestre Royler Gracie havia conquistado isso em 1997.

Mas, se pararmos para pensar, as grandes performances mesmo são dessas duas supermulheres que dominaram a categoria pluma, Thamires Aquino e Amanda Canuto. Vocês foram fenomenais. E parabéns, claro, ao Italo e Jaime, ambos no córner de suas esposas e atletas, somando também as funções de maridos, coaches e pais.

Esse texto é um relato sincero, autoral e fiel à realidade. De alguém que sempre tenta analisar as situações por todos os ângulos possíveis, até mesmo aqueles que estão além da nossa compreensão momentânea. Gostaria, portanto, de convidar você, leitor e leitora, a se colocar no lugar dessas Super-Mulheres e tentarem imaginar o quão espetacular foi a jornada até esse pódio do Mundial 2024. Oss…

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