Como nasceu o ADCC, o torneio dos sonhos dos craques do Jiu-Jitsu

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O carioca Nelson Monteiro ao lado de seu amigo e aluno Tahnoon. Foto: Acervo Pessoal

O carioca Nelson Monteiro ao lado de seu amigo e aluno Tahnoon. Foto: Acervo Pessoal

Em fins de 2021, o empresário Renato Nery dos Santos, criador dos kimonos Braus, queria realizar um de seus sonhos: um livro sobre a história do ADCC, o milionário torneio de luta agarrada criado por sua alteza xeque Tahnoon bin Zayed, da família real de Abu Dhabi, em 1998.

Renato então alistou uma equipe e tanto, em especial um pelotão de fotógrafos brasileiros e alguns estrangeiros, que cobriram toda a saga do ADCC, e nosso editor Marcelo Dunlop para recuperar a história em detalhes, alguns até ali jamais contados.

Dunlop, que cobria o evento desde 2003 e fora repórter até do site oficial do ADCC, abriu seu caderninho de telefones, ligou para mais de 50 campeões, professores e competidores, e escreveu o livro em cerca de quatro meses.

Com dezenas de fotos coloridas, o livro de capa dura foi dedicado a quatro pioneiros do fotojornalismo marcial: Gustavo Aragão, Luca Atalla, Marcelo Alonso e Ricardo Azoury.

Hoje, exclusivo para o GRACIEMAG, ele conta como o ADCC nasceu, o que o inspirou, e outros capítulos curiosos do torneio que hoje sacode Las Vegas e atrai alguns dos faixas-pretas mais respeitados do planeta. O evento já nasceria grandão: o ADCC 1998 foi disputado num palácio folheado a ouro, acostumado antes a sediar exibições de cavalos, e contou com a presença de 72 competidores de 17 países. Os prêmios somaram 70 mil dólares, e todos os lutadores no pódio foram premiados pessoalmente pelos nobres Tahnoon e seu irmão mais velho, Hazza bin Zayed.

Confira, no artigo exclusivo a seguir, como tudo começou. Oss!

 

 

Passageiro para Abu Dhabi

Quem poderia reclamar da vida, em meio às festas de fim de ano de 1994? Não o faixa-preta Nelson Couto Monteiro Jr, que por sinal jamais fora disso. Garotão criado na praia de Copacabana e formado em educação física, o lutador de 78kg chegara cheio de disposição à Califórnia, com a moral de ser um dos primeiros professores de Jiu-Jitsu diplomados na Gracie Barra, escola recém-fundada por Carlos Gracie Jr., num canto aprazível do Rio de Janeiro.

Na Califa, Nelsinho Monteiro começara por baixo. Após uma temporada de bicos e aulas em sua garagem, a aventura em San Diego começava a vingar. Por isso, ele jamais poderia supor que seu fim de 1995 não seria igual àquele que passou. Nem que ganharia uma passagem de primeira classe para ir morar num hotel cinco estrelas, de frente para as águas turquesas do Golfo Pérsico, a poucas milhas dos vizinhos Qatar e Arábia Saudita, nada longe da fronteira entre Irã e Iraque. Se alguma vidente soprasse isso ao seu ouvido em dezembro de 1994, provavelmente ouviria de Nelsinho uma gargalhada gostosa acompanhada de uma de suas frases clássicas: “Ah, tu tá de sacanagem…”

O carioca desembarcara em San Diego em 1989, com um diploma universitário, um kimono e sua faixa-preta de Jiu-Jitsu. Morou de favor em Pacific Beach por um mês, retomou os treininhos em tatame improvisado na pequena garagem dos irmãos Carlos e Felipe Gama, e enfim abriu seu primeiro dojo em casa, num beco acanhado em Encinitas. A primeira academia de Jiu-Jitsu de toda região. Ali, naquela garagem, Nelsinho realizou até um campeonato pioneiro da modalidade, um pequeno torneio interno restrito aos poucos alunos.

A propaganda boca a boca aliada à entrega de folhetos, depositados pelo próprio instrutor na caixa de correio dos vizinhos, foi surtindo efeito. Com o aumento da clientela, o faixa-preta conseguiu estabelecer a escola Nelson Monteiro Jiu-Jitsu no endereço dos seus sonhos, na aprazível e abonada Del Mar.

A academia, localizada no número 2120 da Jimmy Durante boulevard, abrigava com tranquilidade uma dúzia de alunos treinando ao mesmo tempo. Em novembro de 1993, o negócio engatara de vez, com o surgimento meteórico de Royce Gracie e seu cardápio de finalizações no Ultimate Fighting Championship. Com a explosão daquele evento originalíssimo de vale-tudo, sem tempo, sem luvas e realizado numa jaula em formato octogonal, os alunos passaram a brotar de todos os cantos, e o sucesso continuaria com o UFC 2, 3 e 4. As disputas aconteciam nos Estados Unidos e eram transmitidas para todo o país via pay-per-view, sem falar nas fitas VHS que se multiplicavam nas mãos dos jovens de todo o planeta.

Monteiro quase já não recordava mais de seu início bicudo, quando entregava jornais para os leitores do “San Diego Union-Tribune”, ou quando levava, de um lado a outro da cidade, caixas recheadas de queijo, tomate e pepperoni, para os esfomeados clientes da lanchonete Pizza Hut.

Agora, com sua academia estabelecida e repleta de alunos, sem falar em todos aqueles picos de surfe totalmente mapeados, Nelsinho era só felicidade. Até a saudade do futebol do Brasil ele conseguira domar, com as peladinhas perto da praia, todo sábado, que ele não perdia por nada.

E a Dona Sorte não parecia cansar de sorrir para ele. O ápice daquele ano de 1994 seria em julho, mais precisamente no dia 17. Nelsinho, com a namorada e uma turma de amigos, partiu com tudo até as bilheterias do estádio em Los Angeles, para uma missão quase impossível: correr atrás de ingressos para a grande final da Copa do Mundo de futebol. Conseguiram, na bilheteria, comprar alguns dos últimos bilhetes. Em meio a outros 94 mil torcedores, Nelsinho viu ao lado de seu ídolo Rickson Gracie, que também viera ensinar nos Estados Unidos, o Brasil ser campeão do mundo mais uma vez, em disputa de pênaltis eletrizante contra a poderosa Itália. Quem poderia pensar em sair de San Diego com aquela vida? Não o boa-praça Nelsinho.

A reviravolta na história do faixa-preta começaria sem qualquer alarde, com a entrada de um simpático quarteto de forasteiros na academia. Nelson acolheu os três árabes e o inglês com o sorrisão de sempre, apresentando as normas da escola e indo pegar quatro kimonos para o grupo.

Ao entregar o cardápio de pacotes de inscrição para a turma, deu-se a primeira surpresa. “Eu tinha aprendido com o Rickson a oferecer diversos tipos de experiência aos alunos”, lembra Monteiro. “Isto é, eu apresentava desde a matrícula de praxe com mensalidades, até um pacote de luxo, que consistia num dia completo ao meu lado, vivendo o estilo de vida do Jiu-Jitsu. Dava direito a séries de exercícios na praia, almoço com dicas de alimentação, treino de tarde e de noite, aula particular. Eu cobrava por isso 1.200 dólares”. Quando o papel voltou, Nelson precisou conter o cifrão que saltava dos olhinhos. Pela primeira vez, ele havia vendido não apenas um, mas dois dos pacotes mais caros. O britânico Guy e o árabe Bin, como se apresentaram, estavam decididamente ansiosos para mergulhar no maravilhoso mundo do Jiu-Jitsu. Aquela noite, Nelsinho foi para casa quase tão radiante quanto ficara meses antes, depois do jogo entre Brasil e Itália.

Entre os novíssimos alunos, Bin era decididamente o mais interessado. Com a mente aberta, as pernas atléticas de pedalar nas montanhas e uma atenção total aos instrutores, o faixa-branca de 26 anos chegava cedo, trocava os jeans surrados pelo kimono – na época, de algodão grosso e pesado – e tinha sempre uma boa pergunta sobre a mecânica das chaves de perna, triângulos e armlocks da guarda. Logo ficou claro que, além de interessado, o árabe era um aluno forte e muito flexível. E obstinado: na primeira ou segunda aula, Bin caiu mal e machucou o dedão da mão. Nem assim desistiu. “Era impressionante como ele não faltava nunca”, recorda Nelson.

As gafes, à época, foram corriqueiras. Certa vez, um companheiro de treinos virou-se para Bin num dos cantos do tatame: “Vem cá, vou mostrar um detalhe para você finalizar seu patrão”. Bin apenas sorria e ficava lisonjeado pelas dicas técnicas. Para boa parte da turma, como Guy era quem puxava a carteira e pagava as contas, parecia ser o britânico quem liderava a turma. Nelsinho ensinava aos novos alunos tudo o que sabia, buscando inspirá-los a evoluir nos tatames. “Aqui em nossa academia, mais vale batucar três vezes por treino do que ir para casa invicto e sem tentar nada de novo”, ressaltava o professor.

Um dos alunos mais antigos da equipe em San Diego era o baiano Marcelo Pereira, que começara a treinar com Nelsinho nos tempos de garagem, ainda de faixa-branca, juntamente com o local Ted Stickel. Pereira, então já faixa-marrom, começou a reparar que Bin e seu grupo chegavam cada dia num carro diferente. Uma vez, vinham num Porsche Carrera vermelho. Em outra, era uma Lamborghini amarela. Até que, certa sexta-feira, Marcelo não segurou o espanto, ao ver a porta do carro italiano abrir feito nave espacial, quase um Batmóvel amarelo, ali em frente à academia:

– Que carango, meu velho!

O amigo árabe apenas sorriu por baixo dos óculos escuros. Após o treino, Bin virou-se para o faixa-marrom e o surpreendeu:

– Have fun!

E arremessou em sua direção a chave da Lamborghini, indo embora de carona.

“Custei a acreditar que ele deixara o carrão comigo por todo o fim de semana”, recorda Marcelo Pereira. “Mas a generosidade dele já não era novidade. Aos sábados, por exemplo, eu ia até a casa dele dar aulas particulares, quando o Nelsinho estava no futebol. Ali comecei a aprender que, na cultura deles, recusar um presente podia ser uma baita ofensa. Certa vez, após um aulão alto astral nos tatames montados no seu casarão, o Bin me deu uma gorjeta de 500 dólares. Eu tentei recusar, dizendo que não era preciso, mas ele empurrou o dinheiro na minha direção, não aceitou de jeito nenhum. O engraçado na história do carro foi que, quando chegou segunda-feira, eu devolvi as chaves com um sorriso amarelo: é que a Lamborghini gastava tanta gasolina que bebeu meu dinheirinho todo”, diverte-se Marcelo.

Em abril de 1995, o UFC seguia em sua quinta edição, Royce Gracie mantinha o reinado e o Jiu-Jitsu só fazia crescer na América, mas Bin não poderia mais acompanhar aquilo tudo de perto. Ele comentou com o professor Nelson que estava para concluir seus estudos de finanças e negócios pela San Diego State University, e era esperado por seu pai e os muitos irmãos nos Emirados Árabes. Nelsinho lamentou, ainda sem captar as reais intenções do amigo.

Numa tarde quente, Bin então convidou o professor Nelson para um almoço. O restaurante escolhido foi o Sammy’s Woodfired Pizza & Grill em Del Mar, uma elegante pizzaria tocada pelo libanês Sami Ladeki.

Pediram os pratos e o aluno lembrou ao brasileiro que estava muito perto de se formar, mas não queria interromper sua graduação no Jiu-Jitsu brasileiro. Foi quando o árabe baixou as cartas e abriu a guarda:

– Nelson, Bin é meu nome de guerra, como um apelido no tatame. Em meu país, sou mais conhecido como Tahnoon bin Zayed al Nahyan, e meu pai é o sultão que uniu e hoje dirige os Emirados Árabes.

Somente a experiência e a casca adquirida por Nelson Monteiro o impediram de engasgar com a comida.

Sim, aquele seu aluno brabo nos treinos era o filho do rei, mais precisamente o nono filho homem de 19 irmãos, mais as 11 irmãs. Foi aí que o amigo Bin, ou melhor, sua alteza xeque Tahnoon, fez o convite. Ele queria continuar a estudar Jiu-Jitsu com o próprio Nelsinho na capital de seu país, e pediu uma proposta com valores para que o faixa-preta brasileiro se mudasse de mala e cuia para Abu Dhabi.

A mente do professor trabalhava como um liquidificador, batendo uma mistura de sentimentos. Estava envaidecido, claro. Espantado. Empolgado e curioso com seu faixa-azul de sangue idem. Ao mesmo tempo, burilava um modo de escapar dessa brusca mudança de endereço.

Não é que Nelsinho não estivesse doido para conhecer os palácios dos Emirados Árabes, entende? Mas o carioca já tinha uma turma em San Diego, conhecia os melhores pontos para surfar, e sua academia estava cada dia mais próspera. Sem falar, claro, no futebolzinho de sábado. Como largar tudo para trás? Enquanto digeria a novidade, o professor raciocinou, a bordo de seu Nissan Truck: “Vou dar um jeito de recusar com delicadeza, e em troca eu vou lá de três em três meses para puxar uns treinos intensivos com ele nos Emirados. Assim fica bom para todo mundo”, pensou. Ficou combinado que conversariam de novo dali a uma semana.

Sete dias depois, Nelson encontrou com Tahnoon e lhe entregou uma proposta com um salário similar a de um CEO de grande empresa. O príncipe espiou o papel sem demonstrar emoção e assinou no mesmo segundo.

De lambuja, Tahnoon ofereceu ao professor três empregados à sua disposição, acomodação numa suíte do Sheraton Resort e férias de 21 dias – de três em três meses. Tudo com direito a passagens de primeira classe para qualquer lugar do mundo que ele desejasse, de Atenas ao Rio de Janeiro.

Nelson ainda não descobrira, mas Tahnoon vinha de uma família e tanto. Seu pai, o rei Zayed, era conhecido como um monarca sorridente, pacifista e generoso, acostumado a auxiliar nações vizinhas em apuros. O sultão era visto como um símbolo de honestidade e de firmeza incorruptível desde um caso curioso, contado pelos antigos de lá. A história diz que, em 1952, anos antes da fartura do petróleo, sauditas fizeram uma oferta colossal para Zayed declinar da posse de dois pontos estratégicos da região, os oásis de Al Ain e Buraimi, então administrados por ele. Se cedesse, o sultão embolsaria a bagatela de 42 milhões de dólares. A quantia foi serenamente recusada por Zayed. O fato é que Tahnoon herdara do pai algumas dessas qualidades, como a retidão, o dinamismo, um amplo senso de cooperação e uma incansável curiosidade. Com 23 anos, Tahnoon já fundara seu banco em Abu Dhabi, antes de ir se especializar em San Diego.

O que teria acontecido se o professor de Jiu-Jitsu houvesse recusado o novo emprego e optado por seguir em San Diego? Talvez o príncipe buscasse outro instrutor competente. Talvez desanimasse, e começasse outro esporte.

O fato é que a ida do faixa-preta desencadeou uma série de acontecimentos que mudariam para sempre a cara das artes marciais no planeta. A contratação de Nelsinho Monteiro traria ainda duas consequências notáveis para os Emirados Árabes:

O país teria, em fins de 1995, o professor mais bem pago do planeta, provavelmente em qualquer área do conhecimento;
Em pouco mais de 20 anos, os Emirados passariam de um singelo praticante de Jiu-Jitsu (o próprio Tahnoon) para quase 90 mil entusiastas do esporte. Uma explosão demográfica de lutadores sem paralelo nas artes marciais.

O time pioneiro de Jiu-Jitsu dos Emirados, com Ted Stickel e Sean nas pontas, em pé. Foto: Acervo Pessoal Nelson Monteiro

O time pioneiro de Jiu-Jitsu dos Emirados, com os grandões Ted Stickel e Sean Alvarez nas pontas, em pé. Foto: Acervo Pessoal Nelson Monteiro

Um UFC sem sangue nem bordoadas

Depois de visitar o país por uma semana, Nelson Monteiro pegou suas coisas e desembarcou de vez no aeroporto internacional de Abu Dhabi, no segundo semestre de 1995. Ao chegar, viu-se diante de um problema. Mais precisamente, de um problema de 125 quilos de músculos saltados, sangue porto-riquenho e sorriso fácil. Sean Alvarez, halterofilista nascido em Nova York, era há dois anos o personal trainer exclusivo do príncipe Tahnoon e chegara aos Emirados pouco antes do brasileiro.

Agora que o filho do sultão precisava ficar alguns meses em preparações intensivas em alguma base militar do país, Sean era por enquanto o único parceiro disponível para Nelson dar seus treininhos de Jiu-Jitsu. Nascia ali uma grande amizade.

Sean também conhecera sua alteza em San Diego, onde decidira ganhar a vida como preparador físico e conquistara projeção e alguns clientes importantes, como alguns nobres estudantes nascidos em Abu Dhabi, como o jovem Khalfan e seus parentes. Certo dia, no meio de um treino, o telefone da academia tocou e era Khalfan. Ele havia telefonado para todos os clubes de San Diego, pois precisava lhe apresentar um amigo. Em pouco tempo, Alvarez foi contratado como preparador físico exclusivo de Tahnoon.

O americano teve a sorte de testemunhar o momento exato em que Tahnoon se apaixonou pelo Jiu-Jitsu. Numa sexta-feira, 12 de novembro, uma turma grande se reuniu para ver que bicho daria aquele inovador torneio de lutas, que prometia reunir um boxeador, um judoca, um lutador de savate, um campeão de sumô e mais um jovem magricela brasileiro. Transmitido ao vivo de Denver, no Colorado, o UFC 1 vendeu cerca de 86 mil pacotes de pay-per-view, provando que havia milhares de pessoas de fato curiosas para ver quem sairia inteiro daquela jaula, com um belo cheque em dólares.

“Tahnoon reuniu um monte de amigos árabes em sua casa em La Jolla, tenho quase certeza que vimos lá. Mas pode ter sido também no quarto de hotel de alguém no Hyatt Regency Hotel”, Sean recorda. “O que não esqueço é que ficamos todos de queixos caídos e em êxtase com a façanha de Royce no primeiro UFC. Depois daquilo, Tahnoon pôs um tatame grande em casa e volta e meia chamava todos nós para brincar de Jiu-Jitsu, sem kimono mesmo. Era divertido.”

O príncipe dos Emirados não se limitaria a ficar de queixo caído e empolgado como um fã comum. Ele logo notaria que aquele tal de Jiu-Jitsu não era somente um sistema de luta admirável. Ao permitir a uma pessoa levinha subjugar três brutamontes bem treinados na mesma noite – e sem levar um só murro! – o Jiu-Jitsu se assemelhava mais a uma ciência magnífica, capaz de ajudar qualquer um a controlar os nervos, pensar sob pressão e ignorar as emoções diante dos piores desafios. Isto é, uma arma poderosíssima para tornar as pessoas mais equilibradas – física e mentalmente – e mais bem preparadas para tomar decisões.

Foi o que Sean Alvarez também aprenderia, naqueles meses em Abu Dhabi. O gigante americano ganhou lá o seu primeiro kimono e começou a tomar aulas com Nelsinho, enquanto aguardavam Tahnoon voltar dos exercícios militares. Os treinos eram numa academia em um prédio central da capital, e o brasileiro logo notou que o adorável gigante levava jeito. Não usava somente a força bruta para bufar e sobreviver, e sim procurava entender os conceitos e aplicar as alavancas.

Volta e meia, claro, a brutalidade falava mais alto e o aluno arremessava o professor longe, mas na maior suavidade. Os conferes entre os 125kg do americano e os cerca de 80kg do brasileiro eram sempre divertidos, principalmente para os poucos e sortudos espectadores, como o inglês e já faixa-azul Guy Neivens, o fiel escudeiro de Tahnoon. Além de outros raros funcionários.

Após mais um dia de treino, Nelson dividiu com Sean Alvarez uma ideia que começara a alimentar:

– A Federação Internacional de Jiu-Jitsu vai promover no Rio de Janeiro o primeiro Campeonato Mundial, em fevereiro de 1996. E se a gente convocar meus faixas-azuis em San Diego e montar um time, com uns sete competidores? Acha que o Tahnoon abraça essa ideia?

Sean achou fantástico e deu a maior força. Foi quando Nelson contra-atacou:

– Só tem uma coisa: você também vai estar nessa e lutar no Mundial. Até fevereiro você vai estar na ponta dos cascos, ainda mais treinando com a turma. Não se preocupe, brother!

Sean recorda: “Eu gargalhei de nervoso na hora, meu Jiu-Jitsu ainda era muito cru e lutar um Mundial não parecia fazer o menor sentido. Mas disse a Nelsinho que, se ele confiava em mim, eu lutaria por ele. Hoje, quando olho para trás, parece que eu vivi um filme de ação”.

Ou, quem sabe, um desenho animado. Tahnoon, sempre muito competitivo, adorou a proposta, e coube a Nelsinho telefonar na mesma hora para convocar a trupe. O primeiro Abu Dhabi Combat Team foi assim formado por Ted Stickel, Curtis e Micah Pitman, Marc Wolfe, Charlie Kohler e Peter Alain, além de Sean Alvarez e do técnico Nelsinho.

O time viajou junto para o Rio de Janeiro e passou boas semanas no início de 1996 treinando forte no quartel-general da equipe Gracie Barra, em meio a astros da faixa-preta à época, como os eventuais medalhistas de ouro Roberto “Roleta”, Helio “Soneca” e Roberto “Gordo”, além de Marcio Feitosa, Vinicius “Draculino” e outras feras.

Certa tarde, o Abu Dhabi Combat Team causou rebuliço após o treininho. Os colegas de academia saíram porta afora para acenar desesperados para os turistas, que abanavam de volta empolgados. Sem suspeitar de nada, Sean Alvarez, na direção da mini-van alugada por eles, descia a rua a toda em meio ao tráfego confuso da Barra da Tijuca – na contramão, para loucura de motoristas e pedestres.

Pouco antes da inscrição para o Mundial 1996, Nelson foi apresentar o peso pesadíssimo americano para seu professor, Carlos Gracie Jr. Disse que Alvarez estava preparado, apesar dos poucos meses de treino na faixa-branca, e que ia dar trabalho. Carlinhos deu força, foi num quarto e voltou com uma faixa quase branca, de um azul todo desbotado, que guardava em casa. Pronto, agora Sean era faixa-azul e podia competir. Na primeira semana de fevereiro de 1996, como um sonho, o ex-bodybuilder se transformaria num campeão de Jiu-Jitsu. Um campeão mundial, ainda por cima.

Em quatro lutas e quatro vitórias por pontos, Alvarez sobrou com sua ótima forma e exibiu um jogo sólido para levar a medalha de ouro, ao superar Alberto Vieira na final. A outra medalha da equipe, de bronze, foi conquistada pelo faixa-azul Marc Wolfe, no peso pesado.

Em 1997, xeque Tahnoon passou a alimentar outro sonho. Sean Alvarez voltara a vencer com kimono, agora de faixa-roxa, no Pan nos Estados Unidos. Se já tinha um time respeitável, faltava agora um evento grandioso em seu próprio país, um torneio onde poderia criar suas regras e inspirar a juventude do país a treinar e lutar.

A ideia inicial era estabelecer um grande espetáculo com lutas de MMA. Vale lembrar que o Pride japonês só passaria a existir no fim daquele ano de 1997, e o UFC ainda não tinha um grande rival à altura. A organização do promotor Dana White, na realidade, nem vivia seus melhores dias à época, sempre aos trancos e barrancos com as emissoras de TV. Havia definitivamente espaço para um evento capaz de atrair os melhores lutadores do planeta, e chocar o mundo tal e qual os magníficos palácios que subiam nos Emirados, como o inconfundível Burj Al Arab em formato de barco a vela.

O rei Zayed. Foto: Divulgação/Wikipedia

O rei Zayed. Foto: Divulgação/Wikipedia

Havia, porém, alguns obstáculos para o projeto de Tahnoon. O principal era a opinião do rei Zayed, que não concordava com um evento em que os participantes pudessem sair de Abu Dhabi cheios de hematomas, com olhos inchados ou pior, com os ossos do rosto fraturados. Tahnoon planejou então a realização de lutas de artes marciais mistas em outros países. Só que o projeto-piloto, chamado Pentagon Combat, bancado por ele e realizado no Rio de Janeiro em 27 de setembro de 1997, terminou em confusão, com cadeiras voando e fotógrafos escondidos embaixo do ringue de cinco lados, e todas as cenas dantescas exibidas pela CNN. Tremendo fiasco.

Foi quando os americanos lançaram a ideia. Um faixa-preta chamado John Peretti, aluno do lendário dublê e judoca Gene LeBell, decidiu organizar um evento para confrontar uma penca de campeões mundiais de wrestling com craques de outras modalidades de luta agarrada, de modo a tirar a limpo se os atletas de estilo livre e greco-romano eram capazes de amassar lutadores de estilos diferentes.

Foram sete lutas casadas, com sete wrestlers parrudos, na ponta dos cascos, contra sete faixas-pretas de escolas variadas. Com um grande e polpudo detalhe: uma bolsa de 5 mil dólares para cada atleta.

As regras excluíam golpes traumáticos e davam pontos para quedas, trocas de posição e controle das costas. A vitória seria definida por desistência, pontos ou decisão dos três jurados. O local escolhido foi a casa dos anfitriões: Sioux, Iowa, famoso celeiro da luta livre olímpica nos EUA. O torneio chamado “The Contenders” foi realizado com sucesso em 11 de outubro de 1997, e ganhou o público logo na segunda luta da noite.

Campeão meio-pesado do Pancrase japonês, Frank Shamrock topou se testar contra um novato no vale-tudo, que acabara de voltar do Brasil com seu primeiro cinturão. Seu nome era Dan Henderson, craque da luta greco-romana, tricampeão americano na modalidade e participante dos Jogos Olímpicos de Barcelona-1992 e Atlanta-1996. Na jaula circular do Contenders, Frank puxou para a meia-guarda e finalizou em 56 segundos, com uma chave de calcanhar fulminante, após prender firme em suas axilas a sapatilha de wrestling de Hendo.

Um dos embates mais animados do evento foi entre o campeão de Jiu-Jitsu Renato Verissimo, que lutou de kimono, contra a fera de 90kg Mike Van Arsdale, vitorioso na decisão. Mas o grande trunfo para a venda do pay-per-view foi mesmo a sétima e última luta, entre o campeão olímpico de wrestling estilo livre Kenny Monday, medalha de ouro até 74kg em Seul-1988, e o lutador de vale-tudo Matt Hume, que assim como Frank Shamrock se especializara em chaves de perna no Japão.

No placar geral do evento, o duelo estava em 3 a 3, após uma bela chave de braço do canadense Carlos Newton em cima do wrestler Chris Barnes. Hume então puxou para a guarda e aplicou uma chave americana no pé de Monday, para faturar a contenda. Os telespectadores gostaram, os atletas aprovaram e o principal: Tahnoon adorou.

Sairiam apenas o ringue redondo e as grades, e entrariam os tapetes brancos, de dez por dez metros. Estava plantada a semente para o primeiro evento de luta agarrada em Abu Dhabi, a ser realizado nos dias 20 e 21 de março de 1998. O primeiro nome pensado para o evento nos Emirados foi de novo “Contenders”. Mas os atletas, a plateia e os repórteres só o chamariam para todo sempre pelo nome do local onde as feras do Abu Dhabi Combat Team se reuniam para treinar, o Abu Dhabi Combat Club, com suas iniciais simples e sonoras: ADCC.

** Saiba mais aqui sobre o livro do ADCC, editado por enquanto em inglês.

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