Num dos muitos momentos emocionantes da série “Arremesso final” (“The Last Dance”, no original da Netflix), o espectador depara-se com o supercampeão Michael Jordan chorando copiosamente no chão do vestiário. Era o ano de 1996, e o Chicago Bulls acabara de conquistar seu quarto título da NBA.
Cerca de dois anos antes, Jordan sentira que não tinha mais o que provar após o tricampeonato consecutivo da NBA (1991/92/93). Estava cansado da perseguição da mídia e muito abalado pelo assassinato de seu pai. Por isso, havia decidido se aposentar, procurar novos desafios, jogar beisebol. Contudo, como manter um dos atletas mais competitivos e obcecados de todos os esportes no sofá, a assistir em casa outros times e novos jogadores serem coroados, enquanto ainda tinha talento incomparável e vigor físico suficiente para superá-los?
Michael não conseguiu se conter e voltou à NBA no fim da temporada 1994-95. Sentiu a falta de ritmo de jogo, a dificuldade de entrosamento com o novo elenco e a diferença da preparação física do basquete para a que vinha fazendo no beisebol. Os Bulls foram derrotados nos playoffs pelo Orlando Magic e muitos já diziam que a Era Jordan já havia passado. Subestimaram a incomparável capacidade de motivação e dedicação do maior de todos os tempos.
Jordan iniciou sua preparação no dia seguinte à eliminação, treinou obsessivamente por três períodos diários, dedicou-se ao que determinavam seus técnicos e cobrou o mesmo comprometimento dos colegas de equipe. Daí nasceu um time espetacular, por anos o recordista de mais vitórias numa só temporada da NBA (72, com apenas dez derrotas), com Michael eleito o jogador do ano e o Chicago Bulls conquistando o quarto campeonato. O título veio justamente no Dia dos Pais, dando um significado ainda maior para Jordan, que havia parado justamente após a perda de seu genitor. Impossível não se emocionar.
O que possibilita um retorno triunfal como esse após um longo afastamento do esporte? A justificativa mais fácil e impensada para explicar o caso de Michael seria atribuir tudo ao talento inigualável do “Air Jordan”. Então por que grandes ícones do UFC como Anderson Silva e Conor McGregor não conseguiram reconquistar seus títulos? Por que alguns poucos conseguem e tantos falham em empreitadas desse tipo no MMA?
É lógico que não podemos descartar a habilidade como um fator importante. Ninguém medíocre chega a se tornar um campeão do UFC e se manter por um tempo razoável. E é preciso ainda mais talento e inteligência para compensar o declínio físico que inevitavelmente vem com a idade e a inatividade. Foi graças a um nível técnico elevadíssimo que Dominick Cruz conseguiu recuperar seu cinturão peso-galo em 2016 depois de cerca de cinco anos de inatividade em razão de lesões gravíssimas nos joelhos.
Todavia, se talento e dominância garantissem grandes retornos, Anderson Silva, o maior gênio da história do MMA, teria conseguido voltar a reinar. Não foi o que ocorreu. Após sua fatídica derrota e a impressionante lesão sofrida contra Chris Weidman, Anderson nunca mais foi o mesmo. Não existe “perda de talento”. Não era tampouco a idade apenas que começava a afetá-lo. Faltava a motivação.
Como visto acima, Michael Jordan soube transformar a tragédia da morte do pai e a desconfiança da imprensa em motivação. Aliás, Jordan era um mestre em se automotivar. Bastava que alguém o provocasse, que um colunista na imprensa duvidasse dele ou mesmo que um oponente se destacasse, para que Michael usasse isso como razão pela qual precisava treinar o triplo e vencer. Ele se desafiava a provar para todos e para si mesmo que ainda era o melhor, que ainda podia vencer qualquer um. E assim o fazia.
No MMA, quem mais soube se motivar e retornar em triunfo foi Randy Couture. Cinco vezes campeão do UFC, o “Natural” já não era jovem quando começou a lutar MMA. Na estreia no UFC, tinha 33 anos. Durante toda a carreira, conviveu com constantes questionamentos da imprensa e de parte do público. Toda vez que ia enfrentar algum lutador mais jovem como Vítor Belfort (“Fenômeno” então com apenas 20 anos de idade), com mais recursos como Pedro Rizzo ou mais rápido como Chuck Liddell, Randy Couture era visto como carta fora do baralho. Isso o motivava a surpreender, a calar os críticos, a nunca parar. A cada luta em que era tido como azarão, ele sempre parecia querer mais a vitória do que os rivais.
Seu último retorno ao trono foi o mais sensacional e emblemático. Com 43 anos e vindo de mais de um ano de inatividade, Randy enfrentou o bem mais alto, mais jovem e nocauteador Tim Sylvia. A imprensa previa uma derrota constrangedora para o “coroa”, naquele UFC 68. Couture transformou essas críticas pesadas e a desconfiança em combustível para uma chama que parecia inesgotável. Durante cinco rounds, Randy foi uma locomotiva. Com labaredas saindo de seus olhos, derrubou seguidamente Sylvia e usou um jogo de wrestling extremamente desgastante para miná-lo. Couture era quem parecia ser o jovem ali. Após ter seu braço levantado por decisão unânime, o ídolo americano sorriu e declarou: “Nada mal para um cara velho! ”
A série “Arremesso final” comprova que só talento e vontade não são suficientes se não houver dedicação. Jordan era extremamente disciplinado e treinava mais do que qualquer um no time. Não é fácil manter essa rotina quando já se alcançou as maiores honrarias de seu esporte. É preciso uma combinação de autoconhecimento, determinação e engajamento. Aquele velho adágio de que não basta a inspiração sem a transpiração. Quando tratamos de UFC, nenhum campeão representa melhor essa dedicação do que Georges St-Pierre.
Durante toda sua gloriosa carreira no peso meio-médio, o faixa-preta canadense sempre buscou treinar, aprimorar-se, preencher lacunas, desenvolver novas habilidades. Procurava os melhores treinadores no mundo em áreas onde precisava desenvolver habilidades específicas. Pupilo da lenda Freddie Roach no boxe e faixa-preta do professor Bruno Fernandes na GB Montreal, St-Pierre já foi a Londres aprender algumas técnicas da arte suave com Roger Gracie, foi à Tailândia aprimorar muay thai, treinou wrestling com a equipe do Canadá, fez treinos de força e flexibilidade com equipes de ginástica olímpica. A cada luta, esse empenho constante de St-Pierre gerava algo novo para dificultar a vida de seus adversários.
Ao se aposentar após sua nona defesa consecutiva do cinturão meio-médio, Georges continuou se mantendo em forma. Quatro anos depois, motivado por se tornar campeão de mais uma categoria e enfrentar outro veterano do esporte, GSP aceitou disputar o cinturão peso médio contra Michael Bisping, no UFC 217. Para isso, voltou a se dedicar com afinco único e profissional aos treinamentos. Era preciso ganhar mais musculatura e, ainda assim, continuar ágil para poder ganhar de um oponente maior e naturalmente mais pesado.
A disciplina do canadense o levou a praticamente morar na academia e mudar sua preparação para dar mais ênfase em finalizações e em poder de nocaute. Árdua dedicação que trouxe dividendos. Durante os dois primeiros minutos da luta no Madison Square Garden, St-Pierre ainda recebia muitos golpes, mas gradativamente se adaptava à nova dinâmica e conseguia encaixar o que havia treinado. Até que, no terceiro round, quando se esperava que os anos de aposentadoria cobrariam o preço de um atleta menos comprometido, GSP cresceu na luta, acertou um potente cruzado de esquerda, seguiu com socos no chão até pegar as costas de Bisping e finalizá-lo no mata-leão. Tudo que treinara à exaustão fora devidamente aplicado e Georges St-Pierre era novamente campeão do UFC.
Deveríamos nos inspirar nos exemplos desses retornos gloriosos para superarmos os desafios que a vida nos traz, amigo leitor. Não é preciso ser um Michael Jordan ou um Georges St-Pierre. Todos temos nossas próprias habilidades, limitações e dificuldades. Se soubermos combinar nossos talentos com muita motivação e dedicação, haveremos de triunfar.