As histórias e lições de mestre Otavio Peixotinho

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Mestres Pinduka e Peixotinho em aula de defesa pessoal. Foto: Reprodução

* Artigo publicado originalmente nas páginas da GRACIEMAG #243. Para mais conteúdos exclusivos com o melhor do Jiu-Jitsu mundial, assine a revista mais tradicional do esporte em formato digital *

Carlson Gracie e seu faixa-preta Otavio Augusto de Oliveira andavam por Copacabana, por volta de 1985, quando o professor convidou o aluno para passarem na casa do pai, Carlos Gracie. Era aniversário do pioneiro do Jiu-Jitsu brasileiro, e o primogênito queria dar um beijo no pai. Desceram a rua Domingos Ferreira, e quando chegaram perto da casa de açaí Arataca viram o grande mestre se aproximando. Carlson abraçou seu velho e emendou uma desculpa, “Ih papai, não te comprei nenhum presente”. Com os olhos azuis expressivos, o pai devolveu com um afago: “Meu filho, você foi o maior presente que Deus me deu”.

Para o hoje faixa-coral Otavio, popularmente conhecido como “Peixotinho”, um dos maiores presentes que recebeu nessa vida foi a oportunidade de conviver com a família, e ter aprendido Jiu-Jitsu diretamente dos Gracie, ao beber da fonte mais pura. Hoje, ele guarda muitas medalhas, façanhas e histórias divertidas. Além de algumas derrotas marcantes, que ele recorda com o sorriso franco e algumas gargalhadas. Hábitos de quem vive de bem com a vida, graças às décadas de Jiu-Jitsu.

Antes de começar a treinar, Peixotinho não estava tão contente. “Comecei no Jiu-Jitsu depois de um caso de bullying. Passei a treinar para não apanhar. Não esqueço até hoje minhas primeiras aulinhas de defesa pessoal, ensinadas por Rolls Gracie”, conta o mestre de 57 anos, que passou a morar em Lorena, São Paulo, onde trabalha.

A seguir, esse pequeno gigante de 1,73m relembra alguns episódios do Jiu-Jitsu de seu tempo, comenta como foram seus combates com Rickson Gracie e distribui lições úteis para quem quer evoluir na academia.

GRACIEMAG: É verdade que você começou a treinar depois de sofrer um bullying quando criança? Conte por favor esse episódio aos leitores.

OTAVIO PEIXOTINHO: Eu andava com uma turma do surfe, mais velha, e me chamavam de “Chupeta”…. Eu tinha uns 10 anos, perturbava os outros, até que um dia os caras implicaram comigo e me deixaram sem bermuda na areia. Cavei um buraco e fiquei horas ali chorando de raiva, esperando devolverem meu short. A partir dali decidi que ninguém mais ia tirar onda com a minha cara, fosse mais velho ou maior. E fui parar na academia Gracie na Figueiredo Magalhães. Foi assim que comecei no Jiu-Jitsu, com o objetivo principal de não tomar mais porrada. Nunca quis saber de posições que me deixavam a mercê de bordoadas na rua, como puxar para a guarda, meia-guarda. Depois do Jiu-Jitsu, comecei a praticar outras artes marciais também, como luta olímpica, judô com o Osvaldo Alves e boxe com Edison Santos, para conhecer mais desafios. Para dar gás, a gente corria na praia, uns 6km na areia e depois dávamos dez tiros de uns 100m.

E depois que você aprendeu a se defender, não foi à forra? Como um jovem aprende a ser responsável com os novos poderes que aprende?

O praticante de Jiu-Jitsu tende naturalmente ao equilíbrio, a ser agressivo nos treinos e calmo e realizado fora da academia. Aprende-se a pensar duas vezes antes de agir, a deixar o impulso passar. Depois que aprendi Jiu-Jitsu, só reagi uma vez aos camaradas que me levaram o short. Cheguei numa festa e expulsei o cara de lá, sem covardia. Violência em excesso e sem necessidade, é preciso que se diga, atrai negatividade para a vida da pessoa. Agora, é vital não permitir que o pessoal confunda B com B – tem gente que confunde o Bom com o Babaca. Então é preciso se impor, sem ser panaca nem covardão. Até Jesus, o mais bondoso dos seres, uma vez teve de expulsar os fariseus, não é?

 

Peixotinho (à frente) com Março Kuhner, Zezão Eduardo e Rosado. Foto: Reprodução

Você viveu o começo da rivalidade entre o time Carlson Gracie e os alunos de Rolls. Como essas disputas mudaram a cara do Jiu-Jitsu?

Pois é, para mim essa rivalidade entre os alunos dos irmãos Carlson e Rolls foi essencial para o crescimento do Jiu-Jitsu esportivo. Começou como uma disputa dentro da própria academia, já que eles ensinavam no mesmo prédio em Copacabana, e ganhou a cidade. Antes de 1981, os alunos do Carlson disputavam seletivas internas com discípulos dos demais Gracie para ver quem representaria a academia Gracie nos campeonatos. A partir daquele ano, o Carlson resolveu entrar com sua própria bandeira e as seletivas, que pegavam fogo mas eram internas, passaram a pegar fogo nos ginásios.

E todo mundo treinando cada vez mais…

Todo mundo passou a treinar muito mais forte para vencer os adversários, e o estudo das posições fez o esporte dar um salto na evolução. Mas era na amizade, na maioria das vezes. Assim como era duro o treino na academia do Carlson também: Fernando Pinduka, que ganhava tudo que era absoluto; o Rosado, um treino sempre duro na academia; Caíque, Zé Eduardo, Marcio dos Santos, Rosenthal, Marco Aurélio Kuhner, Cassio Cardoso, Ricardo Jucá, o ainda jovem De la Riva… O De la Riva não tinha dois pés, ele tinha quatro mãos, um pé de macaco. Aquela guarda era complicada. E tantos outros…

Alguma história curiosa dessas rivalidades?

Lembro de uma final de absoluto na faixa-marrom que fiz em 1981 com o Maurição Gomes, pai do Roger. Ele tinha 92kg de perna e eu com meus 72kg, e a luta começou. O Maurição me puxou e fechou a guarda dele, que era de fato muito boa. Fazia aquele silêncio no ginásio, até que meu pai, que não entendia nada de Jiu-Jitsu, encheu os pulmões para me incentivar: “Entra na guarda dele, meu filho!”. Não fazia o menor sentido a instrução, e Maurição e eu começamos a rir. Para você sentir o clima, era disputa, era rivalidade mas não era inimizade. Ou pelo menos não devia ser. Cada um ali estava apenas buscando ser o melhor, e quem aparecesse do outro lado da chave era adversário.

Você é famoso até hoje pela luta que fez com o Rickson. O que aprendeu com aquela batalha que está na história do Jiu-Jitsu brasileiro?

Aprendi demais. Eu pedia para um pessoal amigo do meu pai filmar, e assisti àquela luta umas cem vezes. O Rickson usou uma raspagem com a mão na faixa que eu incluí no meu jogo. Senti na pele que dava certo, né? Até aquela final, não levava fé na posição. Eu conhecia a mão na faixa para tentar içar o cara e raspar, mas ele usou a mão na faixa para levantar na guarda, ou seja, fazer a levantada técnica e depois raspar. E dali percebi que tinha múltiplas variações da posição. Outro dia, o Rickson deu um seminário no Rio de Janeiro e fiz questão de aparecer. “Mestre, há muito tempo que queria essa aula contigo!”, saudei. Ele sorriu e disse que seria o maior prazer. Sempre gostei de observar o jogo dos outros e trazer algo para meu estilo.

 

Peixotinho na inauguração da estátua de Carlson Gracie. Foto: Reprodução

O que passou na sua cabeça ali, durante a luta contra o Rickson?

Eu estava no meio do caldeirão, né? (Risos). Para começar, a luta foi no ginásio do colégio Salesiano, estava um calor sufocante. Era 1984 ou 85. Eu tinha acabado de lutar dez minutos naquela manhã com o Zé Paraíba, imagine a fera. Depois mais dez minutos com o Rilion, depois o Sylvio Behring e então o Rickson, um craque. Ele, como um símbolo, representava ali 70 anos de eficiência da família, pouca gente topava enfrentá-lo. O Carlson mesmo me disse: “Não luta, Peixotinho, se não quiser nem entra para lutar”. Mas eu queria aprender. E o juiz nessa final, para dar uma ideia, era o grande mestre Helio Gracie. Foi aquele lutão que vocês viram no YouTube, ele me atacou várias vezes, e eu escapando da montada, eu tinha uma fuga de quadril boa. Até que ele me finalizou no braço, com uns 6min de luta. O Helio até me parabenizou no fim, e falou para o Carlson: “Eu nem ia dar os pontos do Rickson, se ele não finaliza a vitória seria do Peixotinho”.

E teve uma outra luta sua com o Rickson menos comentada, certo?

Sim, eu lutei com o Rickson antes, num torneio de luta livre olímpica, em 1979, no Rio de Janeiro. Era o ginásio da Acadepol, segundo meu amigo Fernando Pinduka recorda. Nessa ninguém derrubou ninguém nem encostou as espáduas, mas ele me ganhou. No mesmo dia, ele perdeu para um panamenho da luta livre olímpica, enquanto o Rolls vencera o outro panamenho na pura malandragem. Esses dois panamenhos eram irmãos e muito técnicos na luta olímpica.

Lembra até hoje de sua primeira aula de Jiu-Jitsu? Como aquilo mudou você?

Eu fui um privilegiado de ter convivido e aprendido com os Gracie, tenho muito orgulho de ter bebido na fonte mais pura do Jiu-Jitsu. Minha primeira aula de Jiu-Jitsu, faixa-branca, foi com técnicas de defesa pessoal em pé, ministrada pelo saudoso Rolls Gracie, que foi quem me graduou faixa-azul. Aprendi técnicas com ele que uso até hoje. Vejo o pessoal hoje dizer, “Ah, no meu tempo o Jiu-Jitsu era mais completo…”. Pera lá, o Jiu-Jitsu sempre foi e será completo. Alguns professores de hoje é que não são completos.

Você então começou com o Rolls, bacana. E como você foi migrando para as aulas do Carlson?

Naturalmente, pois meu irmão treinava com o Carlson. Todos os meus amigos treinavam nos horários do Carlson e fui migrando, então na época que começaram a disputar por equipes diferentes eu já era amigo do Carlson. Mas sempre me espelhei na família e via todos eles com muita admiração, até mesmo os craques da família que eu tive de enfrentar. Tive a oportunidade de lutar com o Royler, Rilion e Rickson, caras que admiro. Eu queria apenas ser o melhor, não melhor que os Gracie.

 

Peixotinho ao centro com Kyra e Renzo Gracie. Foto: Reprodução

 

Quais seriam as cinco lutas favoritas na sua carreira, Peixotinho?

Eu acabei ficando mais famoso por lutas que eu perdi (risos). Como eu era um dos pesos leves da época, as lutas eram bem movimentadas e ganharam fama. E foram lutas que eu mostrei que tinha disposição, pois não era fácil entrar para lutar friamente num ginásio lotado, com o Rickson, que era um mito na época. Minhas cinco seriam: contra o Rickson, Royler, Rilion, Maurição Gomes e Sylvio Behring. Estão todas no YouTube para o pessoal ver.

Como foi essa com o Rilion?

Outro dia falei com ele: “Rilion Gracie, o homem que estalou meu braço!”. Foi um duelo altamente técnico, o Rilion ainda era bem jovem, uns 18 ano, e caímos no mesmo lado da chave. Fiquei atacando a guarda dele e consegui transpor a guarda, algo que ninguém conseguiu. Ele com paciência e habilidade repôs, escalou e pegou meu braço numa chave da guarda, e fui salvo pelo gongo. O braço doeu, mas consegui virar um pouco o cotovelo para fora do golpe e aliviar a pressão, pois eu sabia que estava acabando o tempo. Ele já tinha uma guarda perigosíssima. Mais tarde lutei com o Royler, e foi minha última competição. Me aposentei e fui trabalhar, infelizmente não dava para viver do Jiu-Jitsu na minha época.

Como você procurava fortalecer sua mente de lutador, ir sempre atrás de desafios, dos melhores…?

Sempre achei que perder era besteira, faz parte do Jiu-Jitsu. E sempre fui destemido, acho que aquele episódio da praia me incutiu uma gana tremenda, de que eu seria respeitado de um jeito ou de outro. Na academia, queria sempre treinar com os mais perigosos, treinava boxe com os grandões, treinava com o Sergio Penha no Osvaldo Alves. Eu não tinha vaidade, queria bater no treino e aprender aquela técnica para nunca mais batucar ali novamente.

Poucos sabem que Peixotinho é apelido, não é? Como você ganhou a alcunha marcante?

Um dia eu estava treinando, e o Renzo Gracie e outros primos, ainda garotos, estavam no tatame. Um deles olhou para mim e mandou, na cara dura: “Qual é o seu nome? Você tem maior cara de Peixoto!”. Todo mundo riu e o apelido ficou, são uns sacanas (risos).

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