Do baú: o dia em que voamos com Fernando Tererê

Share it

O jantar a bordo de Tererê, após brilhar ao pedir um suquinho de laranja.
Foto: Marcelo Dunlop / 2015

Numa de suas singelas e brilhantes lições, mestre Carlos Gracie Junior costuma dizer:

“Bicho, quem fica correndo e suando ao puxar mala no aeroporto é o ignorante ou inexperiente. Quem não é burro e tem o mínimo costume de viajar de avião, sabe que o mais inteligente a fazer é chegar bem cedo.”

Fiel ao ensinamento, cheguei com horas de antecedência ao Galeão, aeroporto do Rio de Janeiro, para aguardar em paz o embarque noturno para merecidas férias na Europa, via voo 248.

Estava de papo ali perto do check-in da British Airways quando notei o ilustre passageiro, que chegou com sua saudação bem-humorada.

Para mim seria apenas uma rápida escala em Londres, antes de 15 dias de turismo na Espanha, naquele mês de outubro de 2015. Para o ídolo Fernando Augusto da Silva, o popular Tererê, seria uma viagem de trabalho e seminários pela Inglaterra.

“Grande Dunpol!”, festejou o faixa-preta da Alliance Rio de Janeiro nascido no Cantagalo, onde sua laje-cobertura ostenta uma invejável vista panorâmica que alcança as praias do Leblon, Ipanema e Copacabana, além da lagoa Rodrigo de Freitas e das faces verdes dos morros do Rio. Por algum motivo, Tererê inverte as letras do meu sobrenome, o que não me incomoda, pelo contrário. “Dunpol” me soa como um respeitável comissário da Scotland Yard, e eu não o corrijo, só para seguir com aquele nome ilustre.

Engatamos um papo e Fernando conta que vai visitar suas filiais e vários velhos amigos que foram ensinar na Europa, não apenas na Inglaterra. Logo percebo o tamanho da bagagem de Fernando, com várias malas. “Esta aqui tá pesando 30 quilos, e essa 25. Tudo de camisetas do time Fernando Tererê! Sabe como é, Dunpol, presentinhos para os amigos!”, abre o sorriso marcante.

Após despacharmos as malas, matamos a sede no balcão de um café próximo do embarque, e sentamos para resenhar. Mas o celular de Tererê tocou mais do que de político ou empresário. A poucas cadeiras de nós, um engravatado esbaforido abria e fechava o laptop, dava ordens pelo telefone irritadiço, e esbravejava a cada comando. Tererê também conversava sobre sua academia, sobre a identidade visual e a produção de mais roupas, mas era só candura, papo macio e gentileza. O estilo despojado do Jiu-Jitsu contra o ar enfezado dos homens de negócio, a poucos metros de inevitável contraste.

“Na minha vida toda como praticante de Jiu-Jitsu sempre fiz isso: eu prestava atenção no que os mais antigos faziam de bom, e trazia aquela técnica para o meu jogo, adaptava para o meu estilo. Na minha vida como professor e dono de academia tento fazer igual, sabe? Procuro imitar o que dá certo para os outros”, refletiu. “No início, eu era afobado, queria ver tudo dando certo no dia seguinte. Agora entendo que Jiu-Jitsu, tanto o treino como o lado empresarial, é trabalho de formiguinha.”

O faixa-preta bicampeão mundial (2000/03) abriu filiais da sua escuderia, a Tererê Jiu-Jitsu, em países como Inglaterra, Suíça e Coreia do Sul. É, contudo, na sua academia no sopé do Cantagalo que ele passa maior parte do ano, ensinando a molecada do morro gratuitamente, além de alunos brasileiros e estrangeiros, muitos em aulas particulares. Os negócios seguem bem.

Bem diferente da situação quando um vendaval varreu sua carreira. Tudo começara justamente num avião como aquele, em que entraríamos em breve. Fernando voltava de um campeonato e teve um surto ao tentar se comunicar com uma aeromoça que não falava português. Puxou o braço da comissária, o que naqueles anos traumáticos logo após o 11 de setembro de 2001 era visto como severa ameaça. A treta, ocorrida naquele infeliz 11 de outubro de 2004, acabou com mais dois passageiros agredidos e o voo fez meia-volta para Miami, onde Tererê ficou uns dias retido. Até hoje o faixa-preta não pode retornar aos EUA, por conta do processo, e sua história viraria filme.

Ao nos encaminharmos para a aeronave, pergunto a Tererê se o inglês está afiado após o tempo em que ele viveu em Londres, ali por 2010: “Eu ainda não falo, mas entendo bem mais e sei algumas frases. No meu primeiro voo internacional, eu só sabia falar ‘light coke’, era terrível. A aeromoça passou oferecendo bebida e eu doido para pedir um ‘orange juice’, mas não sabia falar, ficava com vergonha de demorar e no fim bebia ‘light coke’. Tentava apontar, mas no fim acabava falando light coke! Passei o voo inteiro tomando aquilo, cheguei lá borbulhando”.

Eram 22h22min quando o avião decolou. Mesmo sem falar inglês, Tererê desenrolou para a gente o melhor lugar na classe econômica, com espaço de sobra para as pernas. Chegou o carrinho com o rango e Tererê esticou os olhos na minha direção, para confirmar o que eram as duas opções. Optei pela massa, ele escolheu o frango, e comemos sem dar um pio. Para beber, ele mandou ver no orange juice.

“Destroçamos!”, sorriu, depois que raspamos o prato de papelão. Era mais de meia-noite, e o sono começava a bater. Sem esperar que a equipe de bordo recolhesse as bandejas, Tererê exibiu uma fuga de quadril admirável e foi ao W.C. Na volta, lembrou a novidade: “Você não sabe, vou ser avô!”, riu. “Vovô aos 37 anos. Não é fácil não, Dunpol. Tive minha filha muito novo, quando eu ainda era faixa-amarela…”

Não parecia haver a menor lembrança ou trauma de tudo que acontecera a bordo em 2004. Tererê voava tranquilo. Ele me diria horas depois, já em solo inglês: “Eu sempre fui um cara pacato, especialmente depois de começar a competir no Jiu-Jitsu, e ser confundido com um seguidor de Bin Laden num voo não foi mole não. Hoje eu me encolho todo quando passa uma aeromoça, para não correr risco nem de encostar no braço delas. Quero muito um dia poder voltar aos EUA e esclarecer tudo, tenho esse sonho. Quero lutar na Pirâmide de Long Beach um dia, acho que vou conseguir”.

Logo após rangar, Tererê começou a escolher o filme para assistir. Ficou em dúvida entre um filme de ação e um de luta. Mas não conseguiu passar das primeiras cenas. Aos poucos foi esticando a perna, dobrando a outra por baixo como num triângulo. A mão direita vagarosamente repousou no bíceps, enquanto a esquerda apoiou o pescoço, lembrando o movimento de um mata-leão. As pálpebras pesaram, o sorriso enfim se apagou e Tererê caiu no sono.

 

>>> A família de Fernando Tererê está com nova campanha para auxiliar na reabilitação do campeão. Clique aqui e saiba como colaborar da forma que puder.

Ler matéria completa Read more