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Texto: João Pedro Santos
A tarde do dia 23 de julho de 2017 vai ficar marcada para sempre no inconsciente coletivo do universo do Jiu-Jitsu. O relógio da Arena 1, localizada no Parque Olímpico do Rio de Janeiro, apontava 16h35m quando a atração principal do evento Gracie Pro, idealizado por Kyra Gracie, começou. As arquibancadas mais próximas ao tatame estavam lotadas, enquanto que, na área VIP, mestres, lendas, personalidades e até políticos se espremiam junto à grade que contornava a área de luta, a fim de assistir ao combate, o tão esperado tira-teima entre Roger Gracie e Marcus Buchecha.
O primeiro encontro tinha sido cinco anos antes, no evento americano Metamoris, em luta de 20 minutos sem pontos, na qual só valia a finalização. Terminou em empate. O jovem Buchecha, então recém-coroado campeão mundial no peso e absoluto, levara vantagem ao obrigar Roger a usar toda sua técnica e muito sangue frio para escapar de uma perigosíssima chave de braço. Isso foi em 2012 e, de lá para cá, Buchecha amadureceu e se consolidou como o maior nome do cenário competitivo do Jiu-Jitsu. Venceu mais oito medalhas de ouro em Mundiais, igualando a marca de Roger (ambos têm 10 ouros), mas passando a frente em títulos absolutos: 5 a 3. No mesmo período, o Gracie fez quatro lutas de MMA e apenas uma de Jiu-Jitsu.
Entre os entendidos, tirando amigos próximos e parceiros de treino, era impossível encontrar quem apostasse todas as fichas em um ou em outro. No entanto, a maioria via Buchecha como o favorito: oito anos mais jovem que Roger (27 x 35), mais forte e pesado (110kg x 95kg), além de estar em ritmo de competição, tendo vencido seu décimo título Mundial semanas antes. Em entrevista a poucos dias do evento, Roger ponderou: “A vida inteira eu sempre fui o maior. Já lutei com pessoas mais pesadas do que eu, mas os melhores contra quem eu lutei sempre tinham uma diferença de peso (a meu favor). Um Jacaré, um Xande. Então eu acho que a grande vantagem do Buchecha é que eu vou ter que usar mais energia para criar as alavancas e poder mexê-lo”.
A LUTA
Desta vez o confronto seguiu as regras da Federação Internacional (IBJJF), com pontos e vantagens, o que garantiria um vencedor ao final do tempo regulamentar, mesmo não havendo finalização. E para engrandecer ainda mais o evento, Kyra providenciou uma enorme área de luta com mais de 120m2 de tatames e modificou a duração do combate: 15 minutos em vez dos tradicionais 10. Um verdadeiro e merecido palco de gala para dois monstros do Jiu-Jitsu.
A luta começou estudada em pé, como era de se esperar. Os atletas trocaram pegadas em busca da distância ideal para encaixar seus golpes. Roger tradicionalmente se movimenta mais ereto, com postura de judô, enquanto Buchecha se especializou em entradas nas pernas e no corpo, fruto de seus treinos de wrestling na Califórnia. No último Mundial ele derrubou vários oponentes com quedas explosivas. Em contraste, Roger tem um histórico de ser derrubado em grandes lutas, apesar do bom jogo em pé. Alias esse era um dos cenários mais comentados antes do evento: Buchecha derruba Roger e imprime seu intenso ritmo característico por cima, marcando pontos e ditando o paço da luta. “Nós queremos manter a luta sempre em movimento, sem parar. O Buchecha está preparado para fazer 15 minutos de embolo”, revelara o treinador Leonardo Vieira.
De fato foi Buchecha quem atacou primeiro, com uma catada de perna bem defendida por Roger. Com três minutos de luta, os árbitros advertem ambos os lutadores por falta de combatividade. Logo em seguida o atual campeão mundial consegue se desvencilhar da pegada de Roger e entrar fundo num single-leg na perna esquerda. Momentos de tensão: Buchecha troca força e posicionamento em busca do desequilíbrio, mas o Gracie se defende bem novamente. O público vibra. Os fãs de Marcus Buchecha cantam, sentindo o bom momento. Os fãs de Roger cantam confiantes que seu lutador está blindado contra as quedas.
“Eu estudei as últimas lutas dele e sabia que ele ia muito nas pernas. Mas ele não vai nas duas, vai em uma só. Por isso fiquei botando a minha perna para trás”, explicou. Por volta dos cinco minutos de luta, o atleta da equipe Checkmat entra em outro single-leg, desta vez na perna direita, mas estão sobre a área de segurança e o juiz Muzio de Angelis interrompe as ações. Aqui algo curioso acontece: Buchecha, conhecido por sua intensidade e ritmo forte, caminha calmamente de volta para o centro do tatame, como quem quer mostrar que está tranquilo, confiante, sem pressa. Isso talvez tenha passado despercebido para a maioria dos presentes, mas Roger parece sentir algo no ar e toma a iniciativa assim que a luta é reiniciada. Vai em busca de Buchecha, que anda para trás evitando as pegadas. A torcida cresce com ele e a bela arena olímpica é tomada pelos cantos de “Roger! Roger!”.
Com uma pegada na faixa e outra na manga, o Gracie puxa para a guarda. Atento, Buchecha levanta o joelho e impede a posição clássica de guarda fechada. Roger mantém o controle na manga esquerda de seu oponente, que a esta altura parece estar entrando no jogo cadenciado do Gracie, porém um passo atrás. Roger ataca e cai por cima, na guarda invertida de Buchecha, que tenta um desequilíbrio sem sucesso. Roger avança para as costas e usa a cabeça no tatame para evitar ser virado. Numa questão de segundos, ele domina as costas – desta vez com os ganchos – e já envolve o pescoço do adversário com o braço esquerdo. Durante todas essas transições, desde que trouxe a luta para o solo, Roger controlou a manga de Buchecha, que agora só tem um braço livre para tentar escapar. Tarde demais.
“Ele conseguiu fazer uma pegada muito boa no meu braço esquerdo. Na hora que ele subiu, eu errei na estratégia de luta. Não era para virar (de costas) e acabei virando”, analisou Buchecha. Roger é um verdadeiro sniper dos tatames, com movimentos precisos e progressivos. Em uma luta de Jiu-Jitsu, provavelmente não há cenário mais adverso do que ter Roger Gracie nas suas costas com uma mão na sua gola, enquanto você tem apenas um braço livre para se defender. Aos 6min 47seg de luta, Marcus Buchecha não tem alternativa a não ser sinalizar desistência. O ginásio explode de emoção. Familiares e amigos invadem o tatame e erguem o campeão. Roger, sempre muito comedido até nas comemorações, abre os braços e bate com uma das mãos no peito.
“Meu erro foi ter deixado ele ditar o ritmo da luta. Acabei pagando o preço por isso”, refletiu um visivelmente abalado Marcus Buchecha. Roger de fato tinha uma estratégia para impor seu ritmo no combate: “Eu sabia que ele vinha mais acelerado no início, tanto é que eu quase não ataquei no começo. Quando eu vi que já tinha cinco minutos de luta, resolvi parar de só me defender e comecei a imprimir o meu ritmo. Mas não quis me forçar a derrubar, pois senti ele bem em pé. Não queria me cansar. Aí resolvi puxar para a guarda mesmo”, analisou o Gracie, já de volta ao vestiário e com o kimono branco manchado de sangue. “É dele, não é meu não”, explicou.
A DESPEDIDA DE UM FORA DE SÉRIE
Ao ser entrevistado pela organiçação do evento, ainda no tatame logo após a luta, Roger revelou que aquela tinha sido sua última apresentação no Jiu-Jitsu esportivo. Com tanto barulho no ginásio, muita gente perdeu esse importante detalhe e foi pega de surpresa mais tarde, ao ter a notícia confirmada. Afinal, Roger estava inscrito no IBJJF Pro League GP, evento a ser realizado no dia 26 de agosto em Las Vegas e que reunira oito dos maiores nomes do esporte, inclusive o próprio Marcus Buchecha, campeão do torneio em 2016. “Se desse tudo errado (na luta de hoje), eu lutava o GP. Mas foi um prazer enorme, fechei minha carreira com chave de ouro”, disse. Com apenas 35 anos de idade Roger Gracie fica imortalizado como um dos maiores craques da história do Jiu-Jitsu. Competindo em alto nível na faixa-preta desde 2003, pode-se dizer que seu estilo de luta e atitude tranquila são tão ou mais impressionantes que os inúmeros títulos conquistados ao longo da vitoriosa carreira.
Tecnicamente falando, Roger sempre foi um lutador completo. Por ser alto e esguio, é natural que tivesse uma ótima guarda. Nos primeiros anos como faixa-preta, e especialmente após a famosa chave de braço em Ronaldo Jacaré na final do Mundial absoluto em 2004, os oponentes temiam sua guarda. “Para não entrar na minha guarda fechada, eles puxavam primeiro”, explica com um sorriso. Até passadores natos escolhiam começar por baixo contra o Gracie. Ledo engano: por cima Roger se tornou ainda mais letal, usando sua incrível base e envergadura para transpor todos os tipos de guarda, muitas vezes avançando diretamente para a montada, uma de suas especialidades.
Era como se estivessem lutando contra uma duna de areia: quanto mais você cava, mais areia cai sobre você. Seguindo a hierarquia posicional do Jiu-Jitsu clássico, uma vez na montada ou ele finaliza (com estrangulamento cruzado, ezequiel ou chave de braço) ou faz a transição para as costas, de onde liquida a fatura com um mata-leão ou estrangulamento de gola, igual ao que usou contra Buchecha. São golpes fundamentais do Jiu-Jitsu que Roger sempre executou com maestria. Durante a campanha ao ouro duplo no Mundial 2009, o Gracie finalizou todos os seus nove duríssimos oponentes com o estrangulamento por cima. Numa época em que o esporte evolui rapidamente e há sempre uma nova posição ou tendência dominando o cenário competitivo, as incríveis atuações de Roger inspiraram outros atletas a também buscar eficiência da montada. Vide Alexandre Ribeiro, Rodolfo Vieira e Rominho Barral, três grandes expoentes do esporte que eventualmente desenvolveram montadas poderosas.
Por mais que fãs e praticantes de Jiu-Jitsu ainda sonhem em ver o Gracie em ação de kimono novamente – trilogia com Buchecha, mais títulos mundiais, confere contra A, B, ou C da nova geração – a verdade é que o duelo histórico no Gracie Pro foi o desfecho mais que perfeito para a carreira deste fora de série. Em pleno Rio de Janeiro, sua cidade natal, e cercado pelo amor e energia de pessoas que fizeram e ainda fazem parte de sua trajetória. Agora uma verdadeira lenda viva da arte suave, Roger deixaos tatames da mesma forma que entrou. “Ele sempre foi um garoto tranquilo, suave. E hoje ele é um homem suave. Bem diferente daquele estereotipo de lutador agressivo com orelha estourada. Acho que esse jeito do Roger é muito importante para o Jiu-Jitsu também”, derrete-se a mãe Reila Gracie, pela última vez à beira do tatame para acompanhar o filho.
Obrigado por tudo, Roger! O Jiu-Jitsu agradece.