Homenagem surpresa a Chico Mansor ilumina parte valiosa da história do BJJ

Share it

*Fotos: Ilan Pellenberg

Quando o faixa-vermelha Francisco Mansor, 84 anos, entrou pela porta da academia Kioto, no Rio de Janeiro, por volta das oito horas da noite de segunda-feira, 2 de dezembro, seus olhos se arregalaram diante de tanta gente no dojô. Até então o grão mestre pensava se tratar de mais uma visita corriqueira à escola que fundou em 1965. Era, no entanto, muito mais que isso. Noite de festa. Não só uma homenagem surpresa ao sensei, mas também uma ode à história do Jiu-Jitsu moderno, com a presença de mestres renomados, como o professor Fernando Pinduka.

Quando era criança, o pequeno Francisco Mansor (pronuncia-se Mansur) adorava ler e estudar. Alfabetizou-se na fazenda da família e passou a estudar com a molecada mais velha na escola. Foi o começo do seu suplício.“Eu tinha 7 anos e apanhava um bocado dos grandões”, conta o faixa-vermelha de Helio Gracie. “Nasci no interior de Minas Gerais, na zona da mata, num pequeno distrito chamado Cachoeira Alegre. Era tão pequeno que nem tinha cachoeira, mas até que era alegre. Tinha um regato, onde eu gostava de nadar. Fomos estudar numa cidade maior, Muriaé, mas como eu era um aluno avançado, fui para a sala de garotos maiores. Um dos meus coleguinhas se chamava Neném. Ele era um cavalo. De neném não tinha nada, me batia todos os dias. Foi então que falei com meu pai: ‘Quero voltar pra fazenda. Não aguento mais.’”

O pai José, fazendeiro e industrial de sucesso, vivia pelo Rio de Janeiro e outras grandes cidades. Chamou o filhão e disse: “Vou ensinar uma coisa para ti, nunca mais vais apanhar de novo.”

“Eu estava triste mesmo na escola. O que meu pai fez? Me ensinou uma defesa pessoal das mais básicas, os cursos que ele aprendera no Rio de Janeiro. Quando cheguei na escola e o Neném veio… Dei um tomoe-nage! Fiquei de castigo um mês inteiro.”

Mansor quis saber mais sobre a tal técnica suave. O pai explicou. Toda semana viajava a negócios e aproveitava para treinar com um grande campeão, chamado Helio Gracie. Mansor ficou imaginando o gigante musculoso que conhecia a arte da briga. Um dia, decidiu pegar carona em caminhões até o Rio de Janeiro, fugindo de Minas. Virou cadete, e um policial condecorado. “Eu, na verdade, virei um brigão. Era chamado de Doutor Mansor Maluco. Brigava seis vezes por dia.”

Chico então resolveu bater lá na porta da academia Gracie. Ia lá conhecer o temido campeão. Quando adentrou a escola de Helio, tomou um susto. O mestre era um rapaz de bigode, magro e nada impressionante. E ainda lhe abriu um sorriso. Helio gostou do valentão. “Ele se tornou meu segundo pai. E canalizou toda aquela raiva que eu tinha para a prática do Jiu-Jitsu.”

Após encarar alguns célebres combates de vale-tudo, Chico se tornou um dos mais fiéis escudeiros dos Gracie. Ao ler o livro “Introdução ao Jiu-Jitsu”, de mestre Carlos, lançado em 1948, Mansor percebeu o valor de sistematizar o ensino dos pequenos, dos tímidos, dos meninos e meninas que mais precisavam da arte. Foi uma revolução.

Nos anos 1960, Carlos e Helio Gracie decidiram criar a Federação e levar o Jiu-Jitsu esportivo a um patamar mais sério, com divulgação na imprensa, títulos para os competidores e uma inevitável evolução técnica.

“Não esqueço daquele primeiro torneio, em 1964. De tanto carregar na cabeça os tatames de palha, Helio ficou com o pescoço duro! A gente pedia os tatames para cada professor, escrevia o nome da academia embaixo do tatame, com um daqueles pilots de marcar pano, e depois devolvia, na minha picape.”

Por essa época, era preciso definir pontuações e estabelecer as regras mais justas para as competições. Mansor se reuniu, na academia de João Alberto Barreto, com um elenco estelar. Ele conta:

“Fomos todos para a academia do João Alberto Barreto, em Copacabana. O mais bobo ali consertava relógio com luva de boxe! Só os ferozes presentes: Helio, Carlos, Carlson, Robson, Helio Vígio, João Alberto. Lá pelas tantas, era preciso decidir o que era raspagem. Catalogamos: só havia sete raspagens conhecidas. Hoje, pelo sistema da minha academia Kioto, são umas 150.

O que mestre Mansor aprendeu de mais valioso, até hoje? “Com Helio e os Gracie, aprendi que bater nos outros é mais do que perda de tempo, é uma covardia. Quem treina atropela qualquer leigo.”

O faixa-vermelha seguiu a trajetória de muitos professores, e foi ensinar Jiu-Jitsu para policiais fora do Brasil. “Foi um desafio, mas valeu a pena. A única coisa que se começa de cima para baixo é varrer escadas – o resto é sempre de baixo para cima. Me aposentei da polícia em 1999, profissão na qual cheguei a levar 11 tiros, e fui para os Estados Unidos aos 59 anos de idade, com muita coragem, algo que sempre tive. Os três primeiros anos foram muito difíceis, até que comecei a dar aulas a policiais, passei a ensinar defesa pessoal às forças de segurança locais e tudo deu certo.”

Hoje, o mestre continua a dar seminários pelo Brasil e o mundo. Apesar de toda a estrada, ainda lembra de seu primeiro treininho, há quase 80 anos:

“Meu pai, José Francisco, tinha 1,90m. Ele pegou dezenas de sacos de farinha, de suas fábricas de macarrão, costurou tudo e fez um tatame em casa, forrando com lona de caminhão. Hoje, lembro daquilo e penso: o Jiu-Jitsu é realmente uma arte divina, e que pode ser aprendida em qualquer garagem, academia, tapete de sala, no chão de casa, não precisa ser no tatame mais bonito da cidade. Treinei muito em tatame de palha de arroz na minha vida e é com grande satisfação que vejo como o tempo passou e ainda estou aqui para testemunhar a nossa arte marcial chegar a um patamar tão avançado, sendo praticada no mundo inteiro. Valeu a pena todo o esforço e a dedicação ao longo de tantos anos e o aprendizado que tive na companhia de tantos mestres. Sou um privilegiado por viver e testemunhar a revolução do Jiu-Jitsu.”

 

 

Ler matéria completa Read more