Por: André Monteiro*
Venho hoje, a convite de GRACIEMAG, falar um pouco do meu irmão que me alegra e inspira sempre, o Felipe “Pi”, faixa-marrom de Jiu-Jitsu. Felipe, que tem síndrome de Down, treina desde 2008, e é um cara que tem preguiça para tudo, menos para duas coisas: comer (adora seus brownies) e botar o kimono para treinar Jiu-Jitsu.
Comecei a treinar Jiu-Jitsu em 1992 e anos e anos depois vim morar nos Estados Unidos, onde tenho minha academia, em Long Island. Por eu ser o irmão mais velho, o Pi se acostumou a me seguir em meus hábitos. Foi assim, por exemplo, que também se tornou vascaíno fanático, sempre com seu caderno anotando os times e jogadores do clube. Até o dia em que resolveu que queria me imitar também no Jiu-Jitsu.
Era 2008, e ele até então não treinava. Ao passar as férias comigo, como de hábito, ele gostou da minha rotina nos Estados Unidos e começou a treinar direto, todos os dias. Começava assim a respirar, a seu modo particular, o estilo de vida do Jiu-Jitsu – na academia, por exemplo, assumiu o balcão e pedia nome e telefone de quem passasse. Com seu jeito brincalhão, conquistou rapidamente a todos, e sem falar uma palavra em inglês!
Passei a morar, em 2010, com um amigo, o faixa-preta Leandro Fabrício “Dodô”, e junto com a gente um monte de cariocas que tinham vindo ensinar Jiu-Jitsu no Texas. A casa era uma bagunça e tanto, mas o meu irmão se divertia. Com dois anos de treino, ele conquistou assim a faixa-azul.
Quando estava no Rio, o Pi treinava na Nova Geração e na academia do Mauro Ayres. Com o Dodô, ele pegou a faixa-roxa. E, em 2019 agora, foi enfim graduado faixa-marrom.
Mesmo com todas as dificuldades, meu irmão tem como mérito uma memória visual incrível para o Jiu-Jitsu básico. Ele realmente vê uma técnica e a executa de primeira, sem maiores problemas. Para um gordinho, ele se movimenta muito bem e, claro, tem suas posições favoritas.
Se, antigamente, era eu que o inspirava a treinar, hoje é o contrário. O Pi me inspira em vários aspectos. Primeiro: ele não falta aos treinos, dia de treino dele é dia de treino, ele conta com isso e nada o impede.
A segunda é que o Pizão não tem medo nenhum de competir. Já disputou, assim, competições no Rio e nos EUA. Ao lutar, ele não muda o que ele é: quer brincar, dar espetáculo para a torcida e, claro, ganhar. Ele tem apenas um defeito ao treinar: o bicho não quer saber de bater! Dar os três tapinhas não entra na cabeça do valente Pizão.
E isso a gente fala com ele mil vezes, porque é perigoso – na academia todos o conhecem e soltam, mas num campeonato fica aquela tensão – então, há sempre uma conversa com o árbitro, os treinadores e até com o oponente dele. No fim é divertido.
O sonho do Pi agora é ter a própria academia. Ele já gosta de ajudar na aula das crianças aqui em Long Island e sabe ser durão com elas, quando fazem bagunça. Eu acho isso o máximo, e se ele quer, ele vai conseguir.
A faixa-preta ainda vai chegar. Minha meta é que ele siga vindo treinar, e continue nos ajudando, para se tornar um ótimo assistente nas aulas. Não quero graduá-lo como um faixa-preta por honra ao mérito – quero, sim, que seja por puro merecimento e honestidade, com respeito à realidade dele. Ele cansa muito mais que outros, por exemplo, mas adora um desafio, e gosta de se embolar até com faixas-pretas campeões, uma fera. É em cima do tatame que ele vai provar se merece o êxito, como o Jiu-Jitsu ensina.
Meu irmão sempre foi muito colado comigo, e repito sempre aos amigos: sou grato por ter o Pi do jeito que ele é. Eu sei que muitas pessoas acham que eles são limitados, porém a capacidade deles de se adaptarem à nossa realidade o tornam seres humanos únicos.
A felicidade, o amor e o carinho que ele sabe transmitir – e não apenas para os parentes, mas para todos ao redor – são marcas especiais de muitos com a síndrome de down, e com ele isso não é diferente. Quem conhece um down de perto certamente tem boas memórias de convívio.
Rumo à faixa-preta, Pizão! Obrigado por tudo.
* André Monteiro, faixa-preta quarto grau e professor da academia A-Force BJJ Academy, foi entrevistado pelo editor Marcelo Dunlop.