Professor da Atos Guetho Garibaldi, no Rio Grande do Sul, o faixa-preta Kim Ellwanger começou a treinar por acaso, graças a um empurrãozinho geográfico. É que a hoje consagrada escola de Guto e Guilherme Campos, em Porto Alegre, ficava exatamente no caminho de sua faculdade.
Após anos de estrada, Kim se tornou um faixa-preta estudioso, focado em gestão, e acompanha de perto a entrada e saída de alunos para entender como sua academia pode entregar o que os clientes desejam.
O GRACIEMAG bateu um papo com o professor gestor, e aprendeu com ele. Confira os melhores momentos da conversa, a seguir.
GRACIEMAG: Como foi seu início no Jiu-Jitsu?
KIM ELLWANGER: Sempre fiz esporte, mas comecei no Jiu-Jitsu em 2011 na minha equipe, a Atos Guetho em Porto Alegre, aqui no Rio Grande do Sul. Iniciei na academia dos senseis Guto e Guilherme Campos no “treino corujão”, que rolava de 23h a meia-noite. Eu ia depois da faculdade, né? Comecei sem saber o que era Jiu-Jitsu de verdade. Mas a academia era no meio do caminho entre a faculdade e minha casa, tive sorte.
Como foi aprender com um atleta raro como o Guto?
Acho que foi muita sorte iniciar no lugar certo. Poucas vezes na vida vi professores com tanto conhecimento prático e teórico como o mestre Guto, e isso inclui seu irmão Guilherme Campos. Desde o meu primeiro dia, fui apresentado a um Jiu-Jitsu que se mostrava eficaz em qualquer lugar. Eu aprendia no tatame uma dada técnica, e nos dias seguintes eu via o mestrão Guto executando as mesmas posições nas competições de alto nível, como o Campeonato Mundial e o Pan-Americano da IBJJF.
E isso era inspirador para os alunos?
Sim, vejo hoje como isso se traduzia em muita confiança para a gente que era aluno. Em três meses, decidi lutar o meu primeiro campeonato: conquistei o primeiro lugar. A partir dali nunca mais parei. Venho tentando competir e ter algum título importante em todas as faixas para repetir aos meus alunos o mesmo exemplo que tive.
Existe um modo “Atos Guetho” de ensinar? Qual é a filosofia da equipe em Garibaldi, no Rio Grande do Sul?
Creio que sim. Eu fiquei na Atos Guetho da faixa-branca à preta, e a gente sempre foi estimulado a buscar a finalização, demonstrar um Jiu-Jitsu para frente, e jamais amarrar. Isso me ajudou muito. Hoje faz pouco mais de um ano que comecei a gerir a escola Atos Guetho em Garibaldi. Em um ano, temos mais de 80 alunos ativos em nossa academia, e olha que iniciei do zero. Acredito que um professor que busque abrir sua academia de Jiu-Jitsu precisa se capacitar em como ensinar, mas também estudar bastante sobre negócios.
O que você aprendeu nesses 12 meses sobre negócios e Jiu-Jitsu, Kim?
Vejo que a academia de Jiu-Jitsu, por mais que tenha um propósito transformador na vida das pessoas, é uma empresa. Se ela não der lucro aos gestores, professor vai viver de doações. Não vai conseguir se concentrar bem nas aulas. E a gente precisa valorizar nosso esporte. Saber o papel transformador que ela exerce na vida das pessoas. Todos nós já vimos exemplos de alguma pessoa bem sucedida na sua área, que antes foi um aluno nos tatames e se tornou uma pessoa melhor, mais confiante, mais calma. A gente tem de valorizar o que a gente entrega à sociedade. Como qualquer empresa, quem faz a gestão precisa ter conhecimentos básicos sobre finanças, marketing, administração, dentre outros.
O que recomendaria para reter clientes, ou no seu caso, alunos e praticantes?
Na Atos Guetho Garibaldi fiz uma pesquisa de mercado. Qual público eu queria atingir? Que valor meus alunos poderiam pagar mensalmente para ter aula comigo? Quantas pessoas desse público eu conseguiria colocar dentro da academia? Em quanto tempo? Eu conseguiria me sustentar nesse período em que a academia não se pagava? Tudo isso são perguntas que seria legal o professor responder antes de abrir. Hoje a gente consegue oferecer diferentes serviços para diferentes públicos. Tem espaço para todos. Uma academia mais simples em estrutura, que consiga oferecer uma mensalidade mais em conta atinge uma fatia do público. Uma academia com uma estrutura maior, mais bem localizada atinge outra. São públicos diferentes. Isso é o bacana do Jiu-Jitsu. Ele é democrático. Todos podem e devem ter acesso. Mas é útil enxergar a academia mais como uma empresa.
E vocês continuam a monitorar o entra e sai de alunos com essa visão empresarial?
Sempre. Por exemplo, quantos novos alunos eu ganho por mês na academia? Quantos alunos param de treinar na academia? Se eu coloco alunos para dentro mas perco bastante, significa que eu preciso melhorar meu serviço, minha aula. A solução é estudar mais sobre Jiu-Jitsu, trazer mais seminários, recursos que agreguem no serviço que eu vendo. Afinal de contas, as pessoas já estiveram lá, conheceram meu serviço e não querem pagar por ele novamente. Isso acontece em escolas que focam mais no marketing do que no serviço.
E se entram poucos alunos e alunas, como encarar a questão?
Bem, se eu quase não perco, mas também entram poucos alunos e alunas novas, significa que preciso focar no marketing. Isso significa que eu tenho um serviço bom, mas as pessoas precisam conhecer mais sobre ele. Aqui vale investir mais em marketing, redes sociais, tráfego pago. Enfim, coisas que demandam estudo e conhecimento do professor para gerir seu negócio. Se um cara passa a minha guarda com facilidade, sei que preciso estudar, treinar e me dedicar mais pra fazer guarda. A mesma coisa acontece nos negócios, a gente precisa apenas estar atento e saber agir.
Como avalia sua carreira como competidor, Kim?
Comecei a competir cedo no Jiu-Jitsu, com três meses de treino como contei. Fiz três lutas e fui campeão. Desde então não parei mais. No meu segundo ano, fui lutar o Mundial da IBJJF Novice e fiquei em segundo lugar. Meus mestres sempre me estimularam a competir e estiveram presentes em meus campeonatos. Isso me estimulava bastante. Na azul fui campeão peso e absoluto do Campeonato Sul-Brasileiro da CBJJ. Na roxa, viajei muito pelos Estados Unidos e ganhei alguns eventos Open da IBJJF por lá. Na marrom, iniciei competindo de Master 1 pela primeira vez e fui campeão brasileiro. Na preta lutei alguns Open nos quais fui campeão, bem como no BJJ Pro da IBJJF, onde fui campeão peso e absoluto. A competição sempre me ajudou a melhorar meu jogo, lutar com uma pressão diferente. Sempre estimulo meus alunos, quando prontos, a participarem de campeonatos. Acredito que traz uma visão diferente do jogo, uma adrenalina diferente para os iniciantes.
Qual o perfil dos seus alunos hoje, em Garibaldi?
Tenho alunos com diferentes profissões que passam o dia em hospital ou escritórios. Tento incentivar para que eles consigam disputar sempre um campeonato aqui e ali. É gratificante ver um aluno que tem uma jornada longa de trabalho, com filhos, família e que faz Jiu-Jitsu como hobbie, estar em campeonatos saindo da zona de conforto, buscando evoluir. E os parentes também se empolgam, todo mundo ganha.
Que medalha você guarda com mais carinho?
Acredito que a do Brasileiro da IBJJF. Estava há três anos sem lutar, devido à pandemia e a algumas lesões. Foi meu maior período longe de competições. Fiz quatro lutas e consegui finalizar todas, sem sofrer ponto ou vantagem. Na sequência acabei vencendo bem o São Leopoldo Open e o BJJ Pro de Curitiba – nesse sem sofrer pontos também, e finalizando cinco lutas. A vitória é importante, mas gosto quando consigo apresentar um Jiu-Jitsu para frente, buscando a finalização.
O que o alegra mais ao ensinar?
Ao abrir minha escola, peguei um público que nunca tinha treinado Jiu-Jitsu. Foi tudo do zero. Aprender fuga de quadril, saber cair. Consegui então formar alunos sem vícios. Então desde o primeiro dia conseguimos montar um time, desenvolver uma cultura de Jiu-Jitsu e de muita amizade. Isso faz diferença quando a gente pensa em fazer a academia crescer e depois expandir. A gente mantém uma filosofia de que os alunos devem sair melhor da nossa academia do que quando entraram. Eu sempre estimulo os alunos a competirem. Não tem teste melhor para eles verem como está o nível deles do que um campeonato. Para mim, mais importante do que aumentar a quantidade de alunos, é conseguir manter essa cultura de Jiu-Jitsu de excelência e amizade. O crescimento vai ser consequência do que a gente plantou hoje. Isso é o que espero para os próximos cinco anos da nossa equipe. Novos professores, novos graduados, mas sem perder nossa identidade.
O Jiu-Jitsu continua a mudar vidas?
Sim, e como. Todo mundo lembra daquele exemplo de colega de treinos que entrou na academia bem acima do peso, emagreceu e hoje esbanja qualidade de vida. Ou algum amigo tímido, que falava para dentro, e hoje anda de cabeça erguida. Isso tudo a gente observa dia a dia. Como professor, tive um aluno que parou de tomar ansiolíticos e antidepressivos depois de anos, graças a um vida nova que o Jiu-Jitsu proporcionou. Tive um aluno que relatava nervosismo em entrevistas de emprego e com o chefe por conta de pressão; em dois meses de Jiu-Jitsu, ele se mostrava mais confiante. O Jiu-Jitsu é uma ferramenta que transforma a vida.
E nos torneios? Seus jovens pupilos estão fazendo bonito?
Tenho alunos que neste primeiro ano de escola já colecionam resultados, como o Guilherme Orlandi, que após um ano aqui conquistou o segundo lugar no Campeonato Brasileiro da CBJJ e no Sul-Brasileiro da CBJJ. E o nosso Hercules, campeão sul-brasileiro faixa-azul e bronze no Brasileiro da CBJJ. Isso tudo com um ano de trabalho. Esperamos ter mais resultados em breve nos campeonatos de alto nível.
Como a cidade de Garibaldi e seus alunos lidaram com as enchentes e destruições no Rio Grande do Sul?
Muitas pessoas próximas foram atingidas, perderam casa, familiares, conhecidos. Foi inacreditável o que vivemos aqui. E não foi por um período curto. Ficamos um mês com as coisas embaixo da água. Aqui na serra a gente viveu dois momentos distintos. Por ser mais alto, houve desmoronamentos de terra. A parte mais baixa e próxima aos rios sofreu com as enchentes. Poucas vezes eu vi uma tragédia que afetasse a todos diretamente mesmo. Qualquer pessoa que tu perguntava conhecia alguém que perdeu tudo ou tinha perdido alguém.
Que lições vocês conseguiram extrair de toda essa tragédia?
Creio que a gente viveu um senso de comunidade muito grande. Quando tudo começou, fizemos logo uma vaquinha entre os alunos da academia. Rapidamente, outras academias de fora do estado me chamaram para tentar contribuir. Arrecadamos um bom valor, compramos mantimentos e levamos para pessoas afetadas. Teve um dia que a gente não teve aula e os alunos que conseguiram foram até a cidade de Roca Sales, uma das mais afetadas, para levar mantimentos. Buscamos ajudar no trabalho braçal, levar medicamentos, alimentos. A gente fez o que estava ao nosso alcance. Mas foram muitas pessoas fazendo o que estava no alcance. Quem podia, contribuiu com trabalho braçal, quem não podia contribuiu com dinheiro, roupa, pás, equipamentos de limpeza, veículos. A união que a gente teve aqui foi fundamental para reconstruir nosso estado. Apesar de toda a tristeza da tragédia, foi bonito ver todo mundo ajudando. Graças a Deus, nossa academia ficou intacta, o que permitiu que a gente focasse em ajudar quem precisava. Lá na matriz, na Atos Guetho em Porto Alegre, há uma foto de um barco passando na frente, navegando no meio da rua. A academia ficou toda embaixo da agua. Os alunos e professores reconstruíram em uma semana. Foi emocionante de ver.