Hoje você vive e trabalha nos Emirados Árabes, dando aulas de Jiu-Jitsu num projeto escolar que envolve mais de mil crianças. Quais são os principais desafios de ensinar BJJ nesse formato?
VICTORIA LEITE: O projeto escolar aqui está em expansão, tem crescido muito nos últimos anos e cada vez mais crianças estão sendo envolvidas com o esporte. Hoje eu trabalho numa escola de ensino médio, onde o Jiu-Jitsu é uma matéria obrigatória, assim como matemática ou ciências, o que torna o processo de ensinar certamente desafiador, é preciso muito jogo de cintura e criatividade para manter a atenção e a curiosidade nas meninas.
Além disso, cada turma tem em média cerca de 30 meninas, somos duas professoras e damos de 6 a 8 aulas por dia. É desafiador introduzir um esporte de alto contato para meninas adolescentes que vivem em uma cultura completamente diferente do que estamos acostumados.
As aulas são extremamente básicas, na prática temos que introduzir o Jiu-Jitsu para elas, porém, para desenvolver este trabalho, é necessário muita paciência, nas minhas aulas eu priorizo aprimorar a coordenação motora pois elas apresentam grande dificuldade de movimento. Através de movimentos básicos de luta, entendimento da regra e compreensão da progressão de uma luta, pode-se então apresentar e praticar técnicas.
O curioso é a forte barreira cultural que dificulta certas situações, as meninas acham tudo muito estranho e muitas vezes se recusam a praticar certas técnicas. O desafio é grande ao fazê-las praticar alguma técnica como guarda fechada ou montada, aí tem que trabalhar a criatividade e deixar o instinto delas agir através de jogos e brincadeiras onde elas irão praticar a mesma posição ensinada, porém, de forma mais leve, muitas vezes elas nem percebem que estão fazendo o que não queriam.
Quais são as dicas que você costuma dar a quem tem o sonho de ir para Abu Dhabi e viver de Jiu-Jitsu?
Eu sempre prego que se for pra vir até aqui ou sair do seu país pra viver do que ama, a pessoa tem que estar mais do que disposta a sair da zona de conforto. Ser humilde e estar disposto e aberto a aprender novas coisas.
Prezo muito a imagem que passo a outras pessoas, isso deve ser prioridade principalmente para o crescimento profissional. A cultura aqui é bem diferente então é bom estar atento às coisas que se posta nas redes sociais, forma de se vestir e de se comunicar. Estar de acordo com a vida aqui é um grande passo.
Além disso, é primordial saber se comunicar, aqui a gente dá aula em inglês, então, mesmo que não saiba falar tem que conseguir dar uma aula extremamente básica em inglês, saber os comandos e partes do corpo, hoje em dia tá cheio de cursinho na internet específico para professores de lutas, já ajuda e com certeza vai fazer a diferença.
Pelo que você observa no dia a dia, qual é o maior benefício da arte suave para a vida das crianças?
Todo mundo sabe que o BJJ muda vidas, não importa a idade, a prática traz sim muitos benefícios e isso é indiscutível. Vivendo o Jiu-Jitsu diariamente e convivendo com as alunas, umas das coisas que consigo perceber nelas após poucos meses de prática é o desenvolvimento do autocontrole emocional e a capacidade de concentração que é claramente aprimorada.
Eu vi meninas extremamente agitadas se acalmarem e melhorarem sua concentração e foco durante os treinos, e isso possibilita uma melhora geral do comportamento da criança em casa e na escola. E sinceramente proporcionar isso para elas e para suas famílias não tem preço!
Você costuma arbitrar campeonatos da AJP e também em eventos da UAEJJF. Como essa experiência enriquece a sua carreira de professora de Jiu-Jitsu?
Eu sempre admirei a arbitragem, em qualquer esporte, o árbitro é quem conduz a partida/combate e tem que estar 100% atento a todos os detalhes. Eu sou iniciante nessa arte e pretendo aprimorar minhas habilidades ao longo da minha carreira até porque saber as regras e identificar a habilidade técnica de cada atleta ajuda na hora de dar aula, principalmente para crianças.
É o momento em que vemos como cada grupo etário trabalha e identifica oportunidades, podemos ver claramente o nível técnico de cada graduação e também as necessidades a serem trabalhadas.
Não adianta se basear só no nível das crianças às quais damos aula, é importante ver o que está acontecendo em cada categoria, para assim poder ajustar e subir o nível de compreensão de luta de cada aluno.
Quais são os seus planos para o futuro da sua carreira de professora?
Eu tenho muitos planos para o futuro, eu já conquistei muitos sonhos e trabalho arduamente para me desenvolver e chegar aonde eu quero, por isso eu sei que vou chegar lá e não tenho pressa não, vamos levando dia após dia, é como subir uma escada, tem que ser degrau por degrau.
Em médio prazo eu pretendo seguir trabalhando como professora, esse é o principal objetivo, quero poder transformar a vida de muitas crianças e mulheres. Também quero começar a arbitrar eventos da IBJJF, vivenciar de perto a nata do Jiu-Jitsu mundial, participar dos maiores e mais importantes eventos. Me vejo colhendo muitos resultados positivos nos próximos 2/3 anos.
E no longo prazo eu me vejo liderando minha própria academia, trabalhando em conjunto e alinhada aos meus professores Gustavo e Guilherme Campos. Pra esse plano não tenho data ainda, mas sei que vou chegar lá.
Cada vez mais a arte suave é praticada por mulheres. O que você costuma dizer a uma aluna quando ela hesita em praticar BJJ?
Aqui nos Emirados Árabes eu trabalho apenas com meninas e atendo dois públicos bem diferentes, um não conhece o esporte ainda e o outro já teve contato e quer se aprimorar. Na escola é bastante diferente do que no time de competição, na escola eu abordo muito sobre a autodefesa e falo frequentemente sobre os possíveis benefícios que o BJJ pode trazer pra quem se dedica, lá meu foco é o respeito e a responsabilidade.
No clube tem vários perfis, tem as competidoras e tem as que gostam de praticar mas não são tão cascas-grossas. O que eu recomendo para elas independente do que elas quererem ser, praticantes ou atletas, é ter constância e curiosidade para aprender. Não tem segredo, a prática e a repetição são a única forma de melhorar.
Como o Jiu-Jitsu mudou a sua vida e quais as melhores lições que você aprendeu ao longo da sua jornada até a faixa-preta?
O Jiu-Jitsu mudou muito a minha vida, sou extremamente grata por ter encontrado essa paixão. Eu sempre falo para as minhas alunas que eu tenho vergonha de quem eu era antes do BJJ, e que nem quero lembrar da Victoria do passado, ela não existe mais.
Quando eu era adolescente eu só queria fazer festa, bebia muito, tinha uma vida desregrada e sempre fui bastante agressiva, isso porque eu não tinha confiança nenhuma em mim mesma. Mas eu sempre tive interesse em hierarquias e respeito, na verdade eu queria ser respeitada e não sabia como.
O BJJ me mostrou desde o primeiro dia que ordem e respeito eram primordiais dentro e fora do tatame e foi isso que me prendeu no esporte. Aos poucos fui mudando meu jeito, mudei meus hábitos, parei de beber e troquei a noite pelas manhãs e comecei a levar uma vida mais saudável física e mentalmente. As competições também me ajudaram muito a controlar minhas emoções e instinto, melhoraram minha autoestima, agora a agressividade deu espaço para minha autoconfiança e autocontrole.
Ao longo das graduações vamos aprendendo muitas habilidades e não apenas físicas e isso é a parte mais legal do Jiu-Jitsu, o poder da mudança.
Ao longo da minha jornada eu aprendi a ajudar os mais novatos e também a aprender com eles, foi aí que virou a chave e me dei conta que o meu destino era me tornar professora. Comecei silenciosamente a estudar e aprender mais e mais sobre o Jiu-Jitsu e todas as facetas que rodeiam o esporte, em vista de me tornar uma profissional competente e diferenciada.
Quais são os impactos positivos que uma escola de Jiu-Jitsu oferece à sociedade?
Os impactos positivos ficam muito nítidos quando apresentamos o Jiu-Jitsu o mais cedo possível para as pessoas, de preferência ainda crianças e é por isso que eu acredito muito no projeto escolar aqui dos Emirados Árabes, ele deveria estar nas escolas de todo o mundo, os professores e os pais iriam agradecer.
A sociedade precisa de jovens educados, calmos e autoconfiantes, que não precisam ser agressivos ou rebeldes para conseguirem o que querem. As artes marciais em geral são uma excelente ferramenta para moldarmos gerações e vejo como necessidade ímpar incentivar e ajudar nossas escolas/academias a captarem alunos.