Carlson Gracie nasceu no dia 13 de agosto de 1933, mas preferia, por via das dúvidas, comemorar no dia 12. Ele, aliás, não nasceu Carlson, e sim Eduardo. Foi depois de umas semanas que grande mestre Carlos Gracie decidiu que seu primeiro filho teria um nome mais cortante, forte, com as letras C e R – tradição que nasceu com Carlson e marcaria a família. Este ano, em que o faixa-vermelha falecido em 2006 faria 90 anos, GRACIEMAG relembra algumas passagens do professor que mudou a cara do Jiu-Jitsu, por meio do texto de um de seus faixas-pretas mais fiéis, Vinicius Cruz. Boa leitura, e obrigado, Carlson.
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“Pense num cara diferente: esse era Carlson Gracie.
Não dava a menor bola para dinheiro e não tinha distinção com pessoas por status. Sua sinceridade era bruta, beirando a grosseria, fosse com o mendigo da esquina ou com o presidente da República. Assim era Carlson.
Tive a oportunidade de conhecê-lo ainda menino e sempre tive o sonho de garoto de usar aquele pano escrito ‘Carlson Gracie Jiu-Jitsu’ nas costas do kimono. E, quando as aulas na academia do professor Manimal começaram a acabar muito tarde, vi o ensejo para o sonho se tornar realidade.
Vou lhes dizer uma coisa que será difícil de alguém que tenha vivido isso como eu vivi discordar de mim: uma vez com o Carlson, já era! Sim, Carlson era viciante.
Quase sempre os lutadores machucados, que não eram poucos, iam para a academia só para ficar no sofá da salinha, junto com ele, ouvindo Carlson resmungar quando alguém abandonava uma chave kimura para fazer qualquer outra coisa – ele amava a kimura.
Ou então iam para tomar um ‘pé de gavião’ no cocuruto (Carlson juntava os dedos superdelicados e batia com a ponta dos dedos na sua cabeça, como um cascudo) quando você ousava dizer que fulano estava merecendo passar de faixa. Aliás, se você quisesse ver um cidadão mofar na faixa em que estava, era só comentar com o Carlson que o cara estava duro e merecia passar de faixa. Você ganhava um belo pé de gavião, era chamado de ‘cafetão de faixa’, e o pobre sujeito, sem culpa alguma no cartório, ficava mais alguns anos naquela mesma faixa.
Na maioria das vezes, porém, íamos simplesmente para sermos impiedosamente achincalhados quando ele resolvia brincar de ditado com a turma que lotava a salinha. Quando ele puxava o caderninho de dentro da pochete era um Deus nos acuda. Começava o ditado e, nos primeiros erros de ortografia dos alunos, ele dizia: ‘És um asno’.
E eu morria de rir.
Parece estranho, mas era assim mesmo… Plebeus ali, diante do maior de todos, e ele ali, sendo um de nós, sempre. Lembro-me de uma ocasião em que eu estava na salinha e ele ordenou: ‘Vinicinho, pega um papel e uma caneta.’
Eu, sem saída, peguei com tio Amauryzão, pai de Amaury Bitetti, uma caneta para começarmos o ditado. Aí ele, com aquele ar de quem queria me dar uma esculhambada, disse:
‘Escreve o nome daquele ossinho no fim da coluna, o cóccix…’
Eu, por sorte, sabia e escrevi certo; ele, espantado, gritou, com a sua sinceridade peculiar: ‘Ihhhh! Não fugiu do colégio não?!!’
O Carlson era tão diferente que enquanto as pessoas tinham como sonho de consumo um carro novo, ou coisa que o valha, ele gastava todo seu dinheiro comprando CDs, fitas cassetes ou levando seus alunos à churrascaria. E o presente mais adorado que eu já o vi receber foi um singelo pião. Juro. Ele ficou feito uma criança, por horas, rodando o tal pião.
Quando caras como esse passam, como vultos, deixam sempre a sua marca. Indelével.
O Carlson criava uma gíria, ou trazia uma palavra oriunda das rinhas de galo para o meio do Jiu-Jitsu, e pronto! Não dava um mês e a palavra já estava na boca do povo. Quem nunca ouviu alguém chamar outro de ‘creonte’? Ou de ‘mutuca’? São palavras que transcenderam os limites da academia e hoje são jargões conhecidos e difundidos no universo das lutas, criados pela inquietude do Carlson em inventar essas maluquices. Isso sem falar em seus ‘jogo do dicionário’ e o mundialmente conhecido ‘teste de poderosidade’.
Noves fora, não era apenas esse brilho intrínseco que carregava na alma que fazia dele um cara diferente. O seu brilhantismo como mestre, e, principalmente, como técnico, eram inigualáveis. O Carlson tinha o olho clínico. Ele era capaz de desvendar uma posição, que para nós era mirabolante, em dois ou três movimentos simples.
Já fui testemunha, não raras vezes, de ver meus ídolos estudando posições (é, tive o privilégio de dividir o tatame com meus ídolos e me tornar grande amigo deles) e o Carlson chegar, olhar de rabo de olho e dizer:
‘Faz isso e isso…’, e encontrar uma defesa rápida e simples para a posição que até poucos instantes era indefensável. Nas competições, era quase um ritual sairmos das lutas e irmos dar um abraço nele, estivesse ele na mesa organizadora, ou na arquibancada, onde ele gostava de ficar, na beirada, apoiado, com os braços pendurados para dentro da grade. E frise-se: quando o Carlson estava olhando, o gás era outro.
Já presenciei, também não raras vezes, nas eliminatórias para competições, lá na Figueiredo Magalhães, a luta começar no dojô e os dois caboclos irem cair lá dentro do banheiro. Ninguém queria perder na frente do velho.
“Lembro-me disso tudo com um aperto no peito, e digo, sem pestanejos, que foi a melhor fase da minha vida. Chegar lá pela manhã e encontrar o Carlson Gracie Jr, com aquele jeitão boa-praça dando aula. No horário da tarde, ficar sentado no banco, no horário das 15h, só para tomar esporro do faixa-preta Marcelo Alonso. Parece maluquice, mas eu gostava de tomar bronca do Alonso, eu não o conhecia muito bem ainda e esse era o jeito de ele saber que eu existia.
Depois, mais à noite, fazer a aula do professor Saporito, recheada de campeões (Luiz Sergio Barros, Daniel Christoph, Paulão Filho, Maurício Cobrinha Azul, Pedro Babu, Dudu Barros, Bernardo Zuza, Zé Emilio, Daniel Cardoso e tantos outros). E por fim, me deleitar no treino livre, no saudoso tatame da direita, quando encontrava o Murilo, Amaury, Bebeo, Libório, Parrumpinha, Wallid, Allan Góes, Rogério Miranda, Marcel Ferreira, Eduardo Lerner, Eduardo Lins, Alexandre Macedo, Sergio Abimehry e mestre Rosado, que de tempos em tempos aparecia, amassava todo mundo e ia embora, entre tantos outros.
A memória do velho vive conosco em cada história contada, em cada treino, em cada lembrança. E comigo, cada vez que ainda subo aquelas escadas do número 414 da Figueiredo Magalhães, me vem um filme na cabeça, dele me gritando para eu ouvir Edith Piaf, me dando bronca quando descobria alguma arruaça, ou me dando carona de volta para a Morada do Sol. Lembranças… Que ficam marcadas como tatuagem, e que me motivam a ensinar o que ele um dia me ensinou sem querer me ensinar: o Jiu-Jitsu merece ser conhecido por todos, e não somente pelos que têm grana para pagar.
Espero poder estar jogado nos tatames da vida, sempre, até que as leis divinas não me permitam mais, aprendendo, ensinando, e principalmente, levantando a bandeira do maior mito da história das artes marciais contemporâneas.
CARLSON VIVE.”