Quando Marcelo Garcia surpreendeu a comunidade da luta agarrada ao vencer o Abu Dhabi World Submission Wrestling Championship (ADCC) em 2003, em São Paulo, ele disse que tinha treinado pouco mais de uma semana sem kimono em toda a vida.
Havia sido alguns meses antes, quando participou da seletiva brasileira para o evento principal e perdeu a vaga na categoria até 77kg na disputa final contra Daniel Moraes, uma de suas raras derrotas entre atletas do seu peso até hoje. Na semana do torneio, ele foi chamado para substituir um participante que não pôde ir ao Brasil, e o resto é história.
Um dos melhores lutadores sem kimono do planeta adaptou suas técnicas de uma forma muito simples: apenas tirou o paletó. Mas por que mesmo um competidor de uma modalidade (Jiu-Jitsu) participou e e se tornou campeão de outra (grappling)?
O Jiu-Jitsu é uma arte marcial desenvolvida originalmente com o objetivo da defesa pessoal. E cujo treinamento e aperfeiçoamento técnico, em sua história, foram buscados sempre em função das situações mais próximas da realidade. O kimono – hoje associado a uma tradição – foi instituído simplesmente para simular o uso do paletó do terno. O que pode parecer estranho ao visualizarmos uma sociedade que anda em mangas de camisas, mas que é perfeitamente entendido se voltarmos, digamos, 50 anos no tempo, e percebermos que o terno era até bem pouco tempo o “uniforme” do homem em seu dia a dia.
A competição é apenas um dos aspectos do Jiu-Jitsu. E a enorme expansão deste confronto entre atletas da mesma modalidade é coisa recente. De fato, a disputa contra atletas de outras modalidades (o vale-tudo) é anterior a esta prática, já que foi a maneira que o grande mestre e pioneiro da família, Carlos Gracie, encontrou de difundir o Jiu-Jitsu e provar à sociedade que aquele estilo era mais adaptado a situações reais do que os outros.
Obviamente, a imagem de um lutador de kimono ajudava a distinguir a arte marcial de outros estilos confrontados, como a capoeira e a luta livre olímpica. E por uma questão de marketing, o uso do traje foi sempre estimulado.
Tanto que o grande mestre Helio Gracie torceu o nariz quando o sobrinho, Carlson, numa de suas antológicas lutas contra Wilson de Oliveira, o Passarito, retirou no gramado do Maracanã o kimono no primeiro assalto e terminou o combate só de sunga. Mas, se vasculharmos a história, notaremos que o próprio Helio também atuou sem kimono – por exemplo, na luta que o alçou definitivamente à fama, contra o americano Fred Ebert, em novembro de 1932.
Em geral, no entanto, Helio Gracie lutou muito mais de kimono. Carlson, no entanto, que sucedeu Helio como o maior representante da família nos ringues, usou a vestimenta muito poucas vezes em sua carreira. De qualquer forma, sempre trajou o kimono para dar aulas, tanto na academia Gracie como quando passou a ensinar em seu próprio dojo.
O treino “sem kimono”, portanto, acontecia nas academias de Jiu-Jitsu apenas em períodos anteriores a uma luta de vale-tudo marcada. Ou quando estivesse muito quente, ou para variar o treino em determinado dia. Ou, posteriormente, a partir da época de mestre Rolls Gracie, quando os competidores estivessem prestes a disputar, por exemplo, um campeonato de luta olímpica.
Um horário determinado “sem kimono”, porém, não existia, pelo menos na segunda metade do século passado (e ainda permanece assim na grande maioria das academias no Brasil). Até que, na década de 1990, começou um grande êxodo do Jiu-Jitsu para os Estados Unidos, onde muitas academias então instituíram aulas sem kimono, fosse para acomodar alunos que se matriculavam visando à disputa do vale-tudo, agora conhecido através do Ultimate Fighting, ou mesmo para cooptar praticantes de wrestling, modalidade tão difundida nas escolas americanas.
Com a proliferação da prática sem kimono, foi questão de tempo até surgirem as competições. E, no final da década, surgiram ligas como Naga e Grapplers Quest, organizando torneios inicialmente na costa leste americana. Mas a grande virada desta “nova” modalidade ocorreu em 11 de outubro de 1997.
Na época, o vale-tudo claudicava. Bombardeado por um lobby contrário encabeçado pelo senador John McCain, que disputaria a presidência anos depois com Barack Obama, a maioria dos estados americanos proibiu a realização de eventos, e as companhias que distribuíam o pay-per-view aderiram à campanha, tolhendo dos eventos sua principal receita.
Casador de lutas de uma organização de vale-tudo chamada Extreme Fighting, John Perretti tentou contornar a má fama das lutas sem regras – retirou os golpes traumáticos, reuniu nomes famosos como Dan Henderson e Frank Shamrock, e realizou um torneio de luta agarrada chamado “The Contenders”. A audiência foi fraca, e jamais houve uma segunda edição. Porém, entre os telespectadores estava um certo xeque dos Emirados Árabes apaixonado pelo Jiu-Jitsu. Sua Alteza, Tahnoon bin Zayed, gostou do que viu, e sacou que aquela era uma grande ideia de como desafiar e divulgar o Jiu-Jitsu.
Em março de 1998, a equipe GRACIEMAG desembarcou em Abu Dhabi, junto com atletas de diversas modalidades de luta de vários pontos do mundo, e presenciou o primeiro ADCC (sigla que vinha de Abu Dhabi Combat Club, a equipe local).
O evento, que já rodou pelos Emirados, Brasil, Estados Unidos e Europa, estimulou então um processo de divulgação massiva da modalidade, batizada de submission wrestling ou grappling.
Nos primeiros ADCCs, o Jiu-Jitsu prevaleceu. Os wrestlers americanos Mark Kerr e Jeff Monson, o judoca japonês Sanae Kikuta e o bielorrusso Alexander Savko foram algumas das notáveis exceções. Assim mesmo, Jeff Monson é hoje faixa-preta e ardoroso defensor do Jiu-Jitsu.
Mas, se o torneio começou por propor confrontar estilos de luta agarrada, misturando as regras de forma a valorizar as características de todas as modalidades (com pontuações vantajosas para quedas limpas e punições para o ato de puxar para a guarda), e se hoje em dia existem diversas academias específicas do chamado no-gi, por que os atletas do Jiu-Jitsu seguem dominando o ADCC?
Há diversas teorias. Para alguns mestres, as décadas de treino com o uso do kimono deixam a técnica mais apurada e precisa, trunfo necessário para vencer as pegadas dos adversários. Outras teses: a qualidade das alavancas do Jiu-Jitsu e o talento de distribuir bem o peso dos craques do esporte. Há, ainda, quem diga que o Jiu-Jitsu ensina táticas de defesa eficientes ao extremo, como as que Roger Gracie demonstrou em sua vitória quase mágica, no ADCC 2005.
Para muitos, contudo, o grande poder do Jiu-Jitsu está justamente em ser um sistema completo e versátil de técnicas, capaz de ir bem nas ruas, nos tapetes e em qualquer ambiente, com qualquer traje. Um conjunto que que envolve quedas, cotoveladas, luta de solo, controle, finalização, chaves de braço e de pé. O que ocorre, muitas vezes, é que por ser um sistema de artes marciais tão amplo, o praticamente opta por se aperfeiçoar em determinado aspecto em detrimento de outros. Um atleta ama guarda, outro gosta de derrubar e cair por cima, e um terceiro pode ser um grande especialista em chaves de joelho e pé. Alguns estrangulam melhor, outros preferem atacar os braços, e por aí vai. Natural.
Fundamental, no entanto, é que os praticantes nas academias invistam nas defesas, para assim aprender a evitar qualquer ataque, independente do golpe, do estilo do oponente, ou do local da batalha.
Foi o que fez, lá no início, o esporte sem kimono se tornar tão apaixonante e imprevisível, e crescer cada vez mais no planeta.
*** Artigo do baú de GRACIEMAG, publicado originalmente em nossas páginas em 2009, na edição #151.