Por: Xande Ribeiro em entrevista a Marcelo Dunlop
Hoje em dia, vejo o Jiu-Jitsu sem kimono, ou “NoGi” como chamam nos EUA e Europa, distanciando-se cada vez mais do esporte com kimono. Existem atletas especialistas no sem kimono, o que tem ajudado no desenvolvimento de um aspecto técnico diferenciado para a luta sem pano. Hoje, está se consolidando um estilo próprio que antes não havia. É um jogo com um tempo, um ajuste, uma prática muito mais lapidada, e isso acaba fazendo total diferença em alguns casos, em algumas lutas. Creio que no ADCC 2019, na Califórnia, isso ficou mais evidente.
Campeão absoluto e no peso, o americano Gordon Ryan na verdade não frustrou somente o Buchecha, seu adversário na final do absoluto – ele frustrou todo mundo. Estava confiante e bem treinado especificamente para o evento. Senti que muitos dos competidores de pano estavam um pouco cansados ou quem sabe em overtraining, além de terem respeitado muito o Gordon, que, claro, usou de toda a sua catimba e recurso técnico para vencer e convencer bem. O americano é certamente um atleta muito focado e disciplinado. Creio que, se ele investisse no jogo com kimono, ganharia alguma coisa, mas nas competições de alto nível hoje ele ficaria para trás. Porque, sim, é mais fácil tirar o kimono do que colocar. Já numa eventual ida do Gordon para o UFC talvez fosse outra história. Quando o assunto é MMA muitas coisas mudam. Mas ele já provou uma coisa essencial na luta agarrada: quando ele chega a uma posição vantajosa, ele não perde e finaliza. E isso é o que é essencial numa luta. Mas, claro, seria outro esporte, tudo depende muito. Mas como torcedor, certamente eu espero que ele vença no MMA, assim como torço para todos os atletas originários da arte suave.
Gordon Ryan é um especialista em chaves de perna e leglocks, mas não diria que ele está puxando nenhuma revolução técnica – afinal, as chaves de perna sempre existiram. O que acontecia é que, no passado, elas não eram respeitadas e muitas vezes eram até banalizadas, nos treinos e competições. Hoje, alguns dos nossos faixas-pretas pagam o preço por isso. Acredito mesmo que é hora das Federações passarem a permitir todas as chaves da cintura para baixo, como a chave de calcanhar, ao menos nas divisões da faixa-preta. Seria uma vitória contra a limitação técnica, ao meu ver.
Não são as chaves de joelho que atrapalham o Jiu-Jitsu. O que, ao meu ver, tem impedido a evolução dos nossos atletas e praticantes é a tal da “cultura guardista” de competição. Muitos campeões não sabem mais dar quedas, ou sequer têm confiança para buscar o tempo todo uma passagem de guarda. Hoje é muita lapela e jogo invertido. Claro que é bom “desenvolver” o jogo nesse sentido, mas sinto que está ficando um estilo nada balanceado – muitos da nova geração são ótimos raspadores mas se recusam a derrubar ou passar. Isso torna o atleta um campeão eficiente em competição mas deficiente como artista marcial. Hoje o povo ama um pano, manga e lapela. Mas para mim o diferencial que vimos no ADCC é que boa parte da nova geração e até dos mais graduados são deficientes no aspecto de defesa, e estão sem recursos técnicos para defender as costas, a montada e repor do cem-quilos. Sabem tudo de guarda e lapela, mas batem na primeira passagem de guarda. Pode ver as lutas hoje – chegou nas costas, acabou.
Estamos, portanto, numa era onde os especialistas estão se impondo e fazendo a diferença. É muito raro hoje alguém que consegue se adaptar a todas as regras, com tantos eventos variados. Temos os especialistas de kimono, e os especialistas sem kimono, e dentro disso temos as subcategorias – isto é, pessoas que jogam melhor sem ponto, até pegar, os que sobressaem nas regras da IBJJF, na regra do ADCC, com chave de calcanhar, sem chaves etc. O esporte hoje consagra estilos específicos, e fica evidente a diferença de um atleta quando muda de regra. No final, o mais especialista e que se adapta melhor vence.
Seja como for, houve bons duelos no ADCC deste ano. As minhas lutas favoritas foram o Kennedy Maciel com o garoto Rutuolo, além do duelo do Garry Tonon com o Renato Canuto. Teve de tudo, foi emocionante e realmente mostraram técnicas diversas. E o melhor, esses quatro foram para dentro na luta. É isso que o povo quer ver, sempre. Sobre a superluta, o André Galvão se preparou dois anos somente para esse confronto com o Felipe Pena, o Preguiça. Ele sabe lutar e se preparar para essa regra, além de ser muito bom em pé e, claro, saber muito de Jiu-Jitsu, campeão mundial que foi tantas vezes. O Pena, talvez por ter competido e vencido o Mundial da IBJJF este ano, e ter se machucado, pode não ter chegado tão bem como o Galvão, que tem a maneira de lutar no ADCC mapeada na palma da mão. Mesmo veterano com quatro troféus do evento, parecia um garotão lutando, e foi absurdamente constante os 30 minutos de luta. Merecida a conquista.