Felipe Pena, o ídolo Preguiça, já foi rechonchudo e não parecia gostar de treinar muito, durante a faixa-branca. Ao se sagrar campeão absoluto no Europeu da IBJJF, o astro formado na Gracie Barra em Belo Horizonte ganhou um perfil na revista GRACIEMAG, edição #228. Confira e veja como se forja um lutador vitorioso no mundo do Jiu-Jitsu.
Ele costumava chorar escondido após as derrotas, tem um jeito tímido e é sempre educado, com seu sotaque manso de mineirinho. Por trás da cara imberbe de bom moço, porém, esconde-se uma das mentes mais poderosas e blindadas do mundo do Jiu-Jitsu esportivo. Uma cabeça forte de alguém que se recusa a desistir, detesta perder até no treino e persegue a evolução técnica como um predador faminto atrás da presa.
No último Europeu de Jiu-Jitsu, em Portugal, Felipe “Preguiça” Pena, de 24 anos, provou na pele, e nos ligamentos, o poder de sua força mental. Na semifinal do absoluto, contra o talentoso Erberth Santos, Felipe caiu num armlock da guarda arrochadíssimo. O cotovelo estalou, Felipe se jogou para trás ainda aprisionado pelo bote, e livrou-se sabe-se lá como, na explosão. No finzinho da luta, alcançou as costas do rival e o estrangulou. Não adianta você pegar o braço de um grande lutador se não quebrar a mente antes. Pela gloriosa batalha, seu grande amigo e inspiração, Rômulo Barral, que vencera pelo outro lado da chave, não pensou duas vezes e concedeu-lhe a medalha de ouro após o fechamento.
“O Preguiça não bateu na raça, pois o armlock estava encaixadaço e não tinha mais saída na técnica. Ganhar esmigalhando todo mundo é muito bom, pois mostra a superioridade. Mas o grande lutador de Jiu-Jitsu a gente vê mesmo é na adversidade”, ressalta Vinicius Draculino, um de seus primeiros professores em Belo Horizonte. Depois da faixa-azul, Preguiça passou a ter aulas com grandes nomes como Marcelo Uirapuru e Claudio Caloquinha em Minas e Barral na Califórnia, além de seu principal incentivador: o irmão Augusto “Tio Chico” Vieira, também um campeão faixa-preta da Gracie Barra de Belo Horizonte.
Investigamos, neste artigo, como a mente deste peso pesado de cerca de 90kg se tornou imbatível a esse ponto, já que na faixa-branca o pequeno Felipe era um relaxado faixa-branca, meio barrigudo até, que não gostava de treinar e vivia feliz na academia, contanto que pudesse ficar encostado na parede. A partir desses ensinamentos, listamos alguns tópicos que ajudaram o campeão Preguiça a se tornar quase imbatível, com apenas dez anos de Jiu-Jitsu.
1. Tenha bons exemplos na academia
Um antigo filósofo chinês de nome Lao Zi tinha um provérbio que dizia que “o rio só atinge seus objetivos porque aprendeu a contornar obstáculos”, ou algo parecido em mandarim. O Jiu-Jitsu também lembra um ribeirão: ele quer fluir, apesar de encontrar 1.001 obstáculos pelo caminho, dos mais variados tamanhos. Quanto mais cedo o praticante aprender isso, mais suave será sua trajetória, sem tantas quedas bruscas, sustos e tentativas de ir contra a correnteza.
Peguemos como exemplo um menino de 14 ou 15 anos, de boa família, simpático, gordinho e sem muito jeito para esportes. E que ainda fala “uai” e “trem”, como bom mineirinho. Quando começou a treinar, esse praticante, que vamos chamar de Felipe, detinha um conhecimento de Jiu-Jitsu similar a um filete de água, um córrego incapaz de encher um garrafão. Mas, com o tempo, com as subidas e descidas, aquele Jiu-Jitsu iria se tornar uma torrente caudalosa, temida e perene. Daquelas que só resta ao povo dizer: “Sai da frente!”.
“Quando estiver muito cansado na academia, procure chamar o cara mais duro para o último treino. São essas dificuldades que fazem a gente subir um degrau e evoluir” Felipe Preguiça
Como um rio, o hoje respeitado campeão Felipe Carsalade Pena, o Preguiça, enfrentou dezenas de pedregulhos e algumas montanhas pelo caminho. Podia ter se desviado, e se perdido. Mas foi em frente, com valentia. Soube contornar os obstáculos e usá-los como impulso, não como motivo para desistir. Mas qual é o melhor modo de aprender a não desistir? O primeiro é tendo bons exemplos por perto.
O ambiente é um elemento crucial para a vitória, seja no Jiu-Jitsu ou em qualquer ramo. Se na sua casa todos comem guloseimas o tempo todo, vai ser duro você resistir. Se na sua academia há professores e alunos vitoriosos, o exemplo passa para os novatos e o gosto pela vitória é transmitida. Ainda faixa-branca, Felipe percebeu logo, ao ver o irmão mais velho Tio Chico conquistar seus primeiros títulos, que a medalha de ouro tinha um sabor diferente das outras. E foi experimentar também. “O ambiente legal de amizade numa academia é o primeiro passo para você gostar de estar ali. A partir disso você vai de pouco em pouco encaixando as posições, melhorando os golpes, e a partir daí o Jiu-Jitsu decola. Isso ajudou a me apaixonar pelo esporte”, atesta Preguiça.
Draculino confirma o efeito da inspiração: “Às vezes mais difícil do que ensinar é inspirar. O Rominho foi uma inspiração para o Preguiça não só nos grandes títulos e resultados no Jiu-Jitsu, mas principalmente no aspecto de treinar sempre um pouco mais forte, no aspecto de se machucar e dar a volta por cima. A vida regrada é um dos aspectos mais difíceis no Jiu-Jitsu de altíssimo nível, e o Barral vive isso diariamente, com boa alimentação e vários treinos por dia, e passa para os mais jovens. A disciplina de comer direito todo dia, exercitar-se, não faltar a parte física e treinar Jiu-Jitsu é algo digno de um verdadeiro samurai.”
2. Não é preciso dom para ir longe no Jiu-Jitsu
O Jiu-Jitsu é uma arte acostumada a amolecer as juntas e endurecer os músculos das pessoas mais desajeitadas, como faixas-brancas que de início se enrolam até num singelo rolamento. Por isso é uma ginástica que atrai pessoas de todos os tipos, tamanhos e formatos. No caso da família de Preguiça, o caso era curioso. Dizem as más línguas da GB BH que Augusto “Tio Chico” não conseguia acertar um polichinelo e ainda apresenta severos problemas de equilíbrio ao lidar com bicicletas.
“Eu nunca ensinei muita coisa para o Preguiça. O que ele aprendeu comigo foi observando, seguindo o que eu faço dentro e fora da academia” Romulo Barral
“Era de família”, brinca Draculino, fundador da equipe em Minas Gerais. “Quando moleque, o Felipe era um garoto gordinho sem nenhuma destreza física aparente. O Tio Chico também não, mas se matava de tanto treinar, e se tornou um dos maiores cascas-grossas que já treinaram na minha academia. O Felipe além de pouco jeitoso era preguiçoso, por isso ganhou o apelido”. Inspirado pelo irmão e por ídolos como Romulo Barral, Preguiça perseverou no Jiu-Jitsu, e passou a seguir a fórmula tão simples quanto eficaz: se você não possui a habilidade natural dos rivais, treine duas vezes mais que eles. Deu resultado.
3. O lado psicológico precisa ser alimentado
A motivação é uma das questões chaves do Jiu-Jitsu, em qualquer faixa, em qualquer nível de competição. Como a cada degrau conquistado surgem novos desafios, novos oponentes e novas derrotas, além de novas obrigações dentro e fora da academia, é corriqueiro o praticante parar de competir, ou mesmo de treinar. É a velha dificuldade humana de perseverar naquilo que sabemos que nos faz bem, mas que também exige esforço, tanto físico quanto mental. E o lutador corre para o aconchego do sofá, cercado pelos familiares, uma boa TV e algumas histórias antigas.
Na casa de Preguiça, o sofá foi empurrado para dentro da academia de Jiu-Jitsu: a família inteira passou a usufruir do estilo de vida do esporte popularizado pelos Gracie. Augusto, Felipe e o irmão mais novo Fernando, treinam, e hoje tocam a própria escola. O último a vestir o kimono foi o pai, o faixa-roxa Marco, que também disputa campeonatos e debate informações técnicas. Atrair quem você ama para a academia, seja o pai, o filho ou o namorado, costuma gerar excelentes dividendos, não apenas para si mas para quem tomar gosto pela arte suave.
Cercado por gente querida, Felipe Preguiça começou a evoluir. E logo a rivalidade entre irmãos também acendeu uma chama dentro do jovem praticante. Durante a faixa-azul, a veia competitiva de Preguiça começou a saltar, e a chamar atenção – sem sempre de forma positiva. O mineiro não gostava de perder para ninguém, nem em treinos, e vez ou outra empurrava os companheiros contra a parede. Seu primeiro professor, Draculino, precisou dar umas chamadas, para lembrar que “perder” em treino não existe, na academia apenas se aprende. Bom garoto, Preguiça sempre pedia desculpas quando se exaltava, educadamente. Mas a recusa em se entregar já aflorava ali, numa semente do que veríamos anos depois, inclusive em sua última luta no Europeu 2016.
4. Suportar os amassos faz parte do jogo
O faixa-branca que busca se tornar um faixa-preta vive de certo modo um eterno paradoxo no Jiu-Jitsu. Se ele aceitar a derrota sempre, demora a evoluir, fica molengão. Se não aceitar a derrota, fica frustrado, pois 90% dos colegas de academia vão ter os meios técnicos para amassá-lo, quer ele queira ou não. O que fazer?
Muitas academias driblam essa questão evitando que o aluno iniciante treine contra um colega – o novato não rola, apenas aprende as posições e faz treino de repetição de posições, ou faz específicos para passar guarda ou não deixar passar guarda, sendo o treino interrompido a cada tentativa bem sucedida. O melhor para a saúde psicológica do lutador, portanto, é que ele aceite que vai perder, aceite o amasso, mas ponha na cabeça que aquilo ali precisa terminar um dia.
É aí, quando o praticante de Jiu-Jitsu percebe que o amasso não é um drama, não é um recibo de fraqueza nem tampouco é para sempre, é que o coração de campeão começa a aparecer. É a fase em que o praticante de Jiu-Jitsu não quer se poupar nem fica com medo de amasso: seu maior medo é chegar em casa e perceber que não deu seu máximo aquele dia.
Preguiça é conhecido por, mesmo estando cansado no fim de uma noite de treinos, topar sempre mais um rola com o oponente mais duro que estiver à disposição. Uma lição que colheu com os consagrados Rômulo Barral e Roger Gracie, um de seus ídolos na GB, sempre executaram nos treinos. Pior do que perder para um menos graduado ou tomar aquele amasso, é poupar-se.
“Treino é para apanhar e passar de tudo. Desde que eu era faixa-azul, nunca me incomodei de tomar amasso na academia. Sempre gostei de treinar contra os melhores, contra os faixas-pretas mais duros, sem ligar para passar sufoco nem para ser finalizado. A hora de treinar é a hora de pensar em evoluir. E não pensar em ego”, exemplifica Felipe. “Na hora do sufoco, a cabeça da gente só pensa em pedir para parar. Eu fico o tempo todo pensando: não vou parar, não vou parar, e continuo até concluir meu objetivo naquele treino, seja ir até o relógio apitar ou finalizar”.
Eternamente insatisfeito, Preguiça hoje em dia trata de melhorar aspectos diferentes do seu jogo, como o wrestling e o jogo por cima. Zona de conforto nada, o segredo é passar aperto e aprender com eles.
5. Coração + técnica = lutas memoráveis
Ser valente e se recusar a perder não adianta muito se você não se prepara como um campeão. Felipe Pena treina de quatro a seis horas por dia, por exemplo. A técnica também é fundamental para que o astro da Gracie Barra consiga virar as lutas – o jogo cheio de recursos de Preguiça, com ganchos mortais da De la Riva e muito giro, deixa o oponente sempre sob ameaça.
“Ele sempre foi muito CDF para o Jiu-Jitsu. Via muitos vídeos de lutas antigas e sempre fez muitos, mas muitos drills mesmo, repetia tudo até a posição ficar automática. Ele viu rapidamente que treinar uma vez só por dia seria pouco”, relembra Augusto Tio Chico. “O Felipão começou fazendo muito berimbolo na academia, e impressionava pois ficou com uma velocidade de peso-pluma com uma força de peso pesado. Anos depois, quando ele era faixa-roxa e foi morar na Califórnia com o Rominho, ele tratou de se especializar na guarda-aranha, sem deixar de manter uma ida para as costas impressionante”.
Para Draculino, há um outro elemento técnico que torna Preguiça um “virador de lutas”. “Como o Preguiça impõe um ritmo muito acelerado em seus combates, o que o ajuda a manter o oponente na defensiva, por vezes essa velocidade toda acaba resultando em falhas, e ele sai atrás no placar. Por outro lado, uma de suas maiores qualidades é a excelente movimentação de quadril, ele foge o quadril muito fácil apesar do seu tamanho. Sendo assim, ele hoje é dotado de uma reposição de guarda muito fluida e eficiente. Preguiça dificilmente se vira de quatro, ele prefere repor a guarda e isso dificulta os rivais: ao repor, ele além de não dar as costas, rapidamente passa ao contra-ataque e às raspagens”.
A facilidade para chegar ao golpe fatal nas costas, claro, é outro grande atributo de Preguiça. Para o irmão Tio Chico, seu alto poder ofensivo pelas costas começa pelos ganchos De la Riva: “Sinto que o jogo de ganchos dele é muito bom e efetivo, graças às pernas compridas. Com isso ele dificulta muito o adversário a manter a base e a jogar bem por cima, e acaba obrigando o adversário a se expor para escapar desses ganchos”.
6. Aprenda com as derrotas
No ADCC 2015, em agosto último, Felipe fez uma das apresentações mais impressionantes de sua carreira, ao lutar por 40 minutos com Rodolfo Vieira no ginásio do Ibirapuera, em São Paulo. A derrota, na final da divisão até 99kg, veio na decisão dos jurados. Poucos minutos depois, Preguiça já tinha anotado mentalmente os detalhes de wrestling que precisava afiar para a próxima vez. No Mundial Sem Kimono, já em novembro, ganhou peso e absoluto varrendo todos os concorrentes no evento da IBJJF. O CDF mais cascudo de Minas Gerais passava novamente com louvor no mais duros dos testes.
Outro revés marcante deu-se no início de 2013, na semifinal de uma seletiva para Abu Dhabi realizada em Manaus, Preguiça perdeu de virada para Renato Cardoso, por meio de um leglock inapelável tirado da cartola. Felipe batucou. “Foi uma das derrotas mais dolorosas da vida dele, acho”, opina o irmão Tio Chico. Por detestar perder, Preguiça revisa e estuda a posição que erra para nunca mais cometer a mesma falha. O que não significa que Felipe treine três vezes por dia o ano inteiro. “Acho que nem o corpo nem a cabeça aguenta se você não der um refresco. Só comer, treinar e descansar 365 dias por ano é desgastante demais. Gosto de treinar solto quando não tem campeonato por perto, pegar uma praia, viajar pra caramba, ficar com os amigos e com a família… Vida de um ser humano normal”.
A tática tem dado certo, para sufoco dos adversários.