Vinte anos já se passaram, mas ali pelos idos de 1996, os jovens faixas-azuis Cauã e Fernando Augusto gostavam de caminhar juntos pelo Leblon. Entre um treininho de Jiu-Jitsu e outro sob a tutela do professor Alexandre Paiva, os dois matavam o tempo conversando sobre técnicas, surfe e outros temas cruciais para dois rapazes de 16 anos, o mundo todo pela frente.
Um dia, deu-se o seguinte papo: “Aí Tererê, vou fazer umas fotos amanhã para uma agência de modelos, não quer ir comigo tirar umas suas também?”. Fernando sorriu para o companheiro de equipe e devolveu: “Maneiro, Cauã, mas acho que esse lance de fotos não é bem a minha praia”. Daquele diálogo em diante, a carreira de ambos tomou um foguete rumo às estrelas, num sucesso meteórico; e os dois passariam a ser amplamente perseguidos pelas lentes, cada um na sua “praia”: Fernando Augusto “Tererê” brilharia no Mundial de Jiu-Jitsu em todas as faixas, até se sagrar bicampeão mundial como faixa-preta em 2000 e 2003; já o amigo Cauã Reymond abraçaria a carreira de modelo no exterior até explodir na TV a partir de 2002, com a estreia em “Malhação”.
“Ele era muito duro, a gente treinava junto o tempo todo”, relembra Tererê. “Lembro que eu saía do treino da manhã e enquanto a gente fazia hora para o treino da tarde íamos lanchar na casa da avó dele. Quando batia a fome eu só pedia uma coisa, todo dia: um pratão fundo de leite com cereal, que eu não tinha aquilo na favela”, recordou com carinho o astro da arte suave, por telefone, durante uma turnê de seminários na Suécia.
Quando a equipe GRACIEMAG fez contato com Cauã, o ator de 37 anos também estava em turnê, filmando seu próximo filme, “A dupla”. Empolgado com a ideia de voltar a vestir o kimono e rolar com o seu mestrão, o ator topou a entrevista na hora. Na noite combinada, em fins de maio, chegou ao dojô da Alliance Rio sorridente, ostentando um vasto bigode, próprio de seu personagem no filme. Esbanjando simpatia, deu um alô geral e embicou direto para o vestiário da academia para se trocar. O caso de amor do astro da TV com o Jiu-Jitsu é antigo, e começou graças ao pai, o psicólogo José Marques, que percebeu que a arte suave poderia trazer benefícios ao corpo e à mente do filho. Hoje, pai e filho são faixas-pretas e gratos aos treinos.
Logo que Cauã saiu do vestiário, Alexandre “Gigi” Paiva, 50 anos, foi até o escritório e voltou com um presente para o aluno, que hoje surfa e faz boxe mais do que treina no chão: uma faixa-preta reluzente para as fotos. Cauã agradeceu mas recusou com polidez: “Queria usar nas fotos a faixa-preta velha de guerra, tem problema? É a mesma que ganhei em 2002, a de estimação…” Problema nenhum. E assim mestre e pupilo, como velhos amigos, adentraram abraçados no tatame para uma conversa inédita e exclusiva sobre a arte de lutar pelo sucesso. Os melhores momentos você confere a seguir:
GRACIEMAG: Cauã, o que o motivava a treinar Jiu-Jitsu no seu início, lá em 1993?
CAUÃ REYMOND: Quando comecei no Jiu-Jitsu eu era totalmente nerd. Jogava RPG o dia todo, e guardo os dados até hoje… Acho que eu já gostava de brincar com a imaginação, criar personagens, algo que tem muito a ver com minha profissão hoje. Meu pai, José Marques, por outro lado sempre foi esportista, além de psicólogo. Sou filho de pais separados e fui morar com ele aos 14, em Balneário Camboriú, em Santa Catarina. Eu já tinha praticado Jiu-Jitsu uns anos antes, comecei com o Gigi, mas morando com meu pai passei a ir treinar todos os dias, com o professor Paulo Sérgio. Era um espaço de convivência com o meu pai, era agradável. Naturalmente comecei a competir e não parei mais, até a faixa-preta.
Você então gostava de rolar com seu pai?
Na verdade não muito, porque ele é muito competitivo e eu também. Ele é ariano, né? Competitivo nato. E até hoje é assim, mesmo aos 57 anos ele gosta de treinar comigo, tenta me amassar. Ele também já pegou a faixa-preta – parou por uns dez anos mas hoje voltou a treinar direto.
Então você foi um rapaz totalmente fissurado no Jiu-Jitsu…
Não, eu não era fissurado: era um atleta. Minha rotina: eu treinava com a galera de manhã, ao meio-dia dava uma corridinha na areia fofa, chegava no fim de tarde para fazer posição e repetições durante o treino das crianças, e depois treinava duro de noite. Eu tinha uma vida regrada, não saía de noite, tomava Metrex, comia massa integral antes de lutar, não transava antes de competição, seguia certinho o que os mestres diziam naqueles tempos. Vivi assim até os 18 anos, quando viajei para fora para tentar a carreira de modelo.
Como o Jiu-Jitsu ajudou você naquele início de carreira, enquanto você tentava não ser apenas mais um na multidão de modelos aspirantes?
O Jiu-Jitsu me trouxe muitas qualidades boas. Me trouxe responsabilidade. Me trouxe foco. Me ensinou que a vida profissional deve ser levada com cautela. A caminhada até o topo é longa em qualquer carreira. Tive muita sorte também de ter entrado numa academia com o Gigi como professor, onde aprendi muito sobre o respeito à hierarquia, o valor das amizades, e a competitividade positiva. Mesmo com as disputas no tatame sempre parelhas, o Gigi jamais estimulou uma competitividade negativa entre nós. É importante lembrar que eu me descobri um cara competitivo nesses tempos de Jiu-Jitsu. Trabalhei como modelo por três anos, o que descobri ser uma carreira um pouco frustrante, pois ninguém depende apenas de si mesmo: na maioria das vezes você fica na espera que alguém aponte você como “o rosto certo” para determinada marca.
E como ator, os anos de Jiu-Jitsu foram úteis?
Creio que sim, o Jiu-Jitsu é de grande valia na minha carreira, em especial na questão da determinação. Hoje entendendo que aquela vontade que me fazia treinar de manhã, correr na praia de tarde e treinar mais à noite, não era apenas fome de treino – era a gana de aprender, a força interna de buscar ser melhor; de ser melhor do que eu mesmo, e não apenas melhor do que os outros à minha volta. Essa vontade me fez crescer sempre. Também aprendi naquele tempo a ser metódico. Por exemplo: nos treinos com os mais velhos, eu aprendia com eles; na corrida, eu tentava melhorar a parte respiratória; no treino da noite, repetia as posições; e de noite era a guerra, onde eu testava tudo o que aprendera mais cedo contra caras de pesos variados.
ALEXANDRE GIGI: Queria aproveitar e deixar registrado aqui que o Cauã fez parte de uma época especial para mim, pois a turma dele foi uma verdadeira geração de ouro da academia, só moleque promissor. Era a maior concentração de talentos por metro quadrado que eu já tinha visto. A academia era infinitamente menor que esta aqui hoje, eram os tempos da Strike. Os treinos eram como num calabouço, e o Cauã, o Tererê, o Léo Leite, o Gabriel “Pensa”, Alexandre Street, Cláudio e Felipe Moreno, Faustinho, Faustão e muitos outros se embolavam o tempo todo, se puxavam, davam dez treinos de dez minutos e queriam mais. Eu me divertia de verdade assistindo aos treinos. E minha maior alegria não foi incentivá-los da faixa-branca até a preta apenas, foi ver aquelas crianças se tornando homens. O Cauã, por exemplo, era um garotinho. Hoje ele me passa a firmeza e a autoconfiança de um grande faixa-preta, o que me gratifica. E ele vive num meio para lá de atribulado, cercado de celebridades e cobranças, e tem mostrado um estofo e uma maturidade que me impressionam.
CAUÃ: Na realidade, a autoconfiança é um aspecto importante para qualquer meio onde a competitividade é extrema, pode ser o mundo do show business, o meio empresarial ou o UFC. E isso eu acho que sempre procurei demonstrar na nossa academia: sangue no olho, treinar caindo para dentro, fosse contra quem fosse. Eu me amarrava em competir, lutar no adulto ainda sendo juvenil, se fosse preciso, como a gente fazia no Brasileiro de Equipes, que nós da Alliance vencemos em 1996 e 1997.
O Jiu-Jitsu já o salvou de alguma enrascada física, diante de algum inconveniente?
Não, não. Eu jamais serei o cara que vou partir para a violência, mesmo porque acredito que um faixa-preta de Jiu-Jitsu é uma arma branca ambulante. Nenhuma briga vale a pena para mim – se eu bater é ruim, se eu apanhar é ruim, se bater e levar é terrível também. Mas o Jiu-Jitsu me deixa sempre preparado para qualquer situação: por exemplo, fui assaltado apenas uma vez na vida, e mantive a frieza e o controle o tempo todo.
Também houve um dia em que o Jiu-Jitsu salvou minha pele mesmo, em Miami: um motorista bateu na minha moto, eu dei cinco rolamentos e saí intacto. Poderia ter me machucado feio. Quase um dublê. Pois é, esta foi mais uma vantagem que o Jiu-Jitsu me proporcionou: sempre fui capaz de fazer a maioria das minhas cenas de ação, sem precisar ser substituído por um dublê. Como sempre fui um atleta bem alongado, sempre tive uma compreensão e uma inteligência corporal úteis em muitos papéis que ganhei.
Uma das grandes lições do Jiu-Jitsu é ter sempre um plano B, para qualquer situação… Sua mente funciona assim?
Isso eu acho que faz parte de mim, sim. Tem um aspecto importantíssimo do Jiu-Jitsu que é o de não se precipitar uma situação, manter a frieza e não reagir, o que muitas vezes apazigua e soluciona uma situação. Já passei por situações de pessoas tentando me provocar, principalmente quando estas pessoas sabiam que eu já tinha sido competidor… Alguns indivíduos passam da conta, em ocasiões como no sambódromo por exemplo, e tentam se autoafirmar em cima de você. Nessas situações eu sempre soube buscar a melhor saída, falar firme quando preciso, manter a noção de espaço e escapar da ameaça da melhor maneira.
Qual foi a sua maior alegria no Jiu-Jitsu?
Uma que me marcou muito foi um título sul-brasileiro que conquistei, em Santa Catarina. Eu venci este campeonato três vezes na faixa-azul, mas a primeira medalha de ouro foi a mais memorável, ainda na faixa-amarela. Meu pai estava à beira dos tatames, junto com toda minha equipe, e lutei a final contra um aluno do Rilion Gracie. O garoto me raspou, passou a minha guarda e estava vencendo por uns 5 a 0. Por algum motivo o campeonato já estava no fim, o ginásio todo parado olhando a luta, e com uns 30 segundos para acabar eu encaixei o triângulo e finalizei o garoto. Meus olhos se enchem de lágrima até hoje quando lembro, foi muito bonito. Celebrei com meu pai, choramos juntos, aquela emoção. Rolou ali uma conexão além do esporte, um momento elevado que lutar Jiu-Jitsu me proporcionou. Acho que esse foi um dos dois ou três momentos mais emocionantes da minha vida até hoje, esse triângulo e o nascimento da minha filha, Sofia.
O que você sente ao ligar a TV e ver o Jiu-Jitsu presente de forma positiva na novela “A força do querer”, com a policial faixa-preta vivida pela Paolla Oliveira?
Fico muito feliz, pois era algo inimaginável há um tempo, né? Quando eu competia o Jiu-Jitsu estava com uma fama ruim devido aos brigões, e hoje a novela exibe o lado positivo e verdadeiro da arte: o lado da saúde, filosofia, defesa pessoal, anti-estresse, uma atividade esportiva admirável para homens ou mulheres.
É verdade que você já conquistou um cinturão, em Nova York?
Sim, teve isso. Eu ganhei uma bolsa de estudos em Nova York, estava estudando para ser ator em Manhattan. Precisava pagar as contas e comecei a dar aulas, na academia do Fabio Clemente, para praticantes de todas as idades. Um dia soube de um torneio absoluto, entrei e venci, faturando um cinturão bonito mesmo. Eu era faixa-roxa e venci um aluno do Renzo casca-grossíssima na final. E o mais valioso nesse período não foi isso, foi o que aprendi dando aulas naqueles dois anos. Chegava cada armário orelhudo, o pessoal do wrestling, querendo nos testar… Olha, ensinar Jiu-Jitsu em Nova York me fez conhecer profundamente o ser humano.
E aquele perrengue que você passou em Milão, diante de um modelo meio agressivo, poderia relembrar o lance?
Tem tempo isso… Eu estava na Itália tirando umas fotos, eram idos de 1999. Para você ver como eu não conseguia parar de treinar, eu pegava o kimono e ia numa academia de judô manter a forma. Eu morava em Milão e meu vizinho de porta era um marinheiro americano, um ex-Navy Seal que tinha sofrido uma explosão de granada na Somália, tinha umas marcas no braço e virou modelo, era dono de um rosto marcante. Ele tomava uns remédios tarja preta e gostava de me provocar, perguntando o que era Jiu-Jitsu, queria brincar de briga, aquelas coisas. Eu procurava evitar sempre. Até que um dia na rua ele me agarrou, nos embolamos e dei um armlock nele. Ele ficou enfurecido comigo. Bateu na minha porta com um facão horas depois, me xingando, dizendo que o braço dele estava machucado. Mas eu como sempre mantive a frieza, expliquei que não quis machucá-lo e a situação se tranquilizou. Depois a esposa dele me explicou que ele tinha esquecido de tomar alguns dos remédios.
Você sempre cultivou hábitos saudáveis, o Jiu-Jitsu, o surfe, a ioga, natação. Como esse estilo de vida ajuda na carreira?
Tenho muitos amigos boêmios hoje, mas desde os tempos de Jiu-Jitsu continuo gostando de acordar bem disposto, de dormir e levantar cedo para curtir a vida. A qualidade de vida é meu esporte favorito, entende? E isso aprendi com o meu pai e com o Gigi desde os tempos de competidor. O Gigi sempre foi um professor muito família. Aliás eu treinei muito com a Dani Figueiredo, esposa do Gigi até hoje. Ela era muito técnica, e extremamente casca-grossa! Uma coisa que poucos sabem até hoje é que eu não tinha muita grana, e a Dani e o Gigi não deixavam eu pagar para competir, sempre me ajudaram muito. O Gigi falou de “estofo”.
Como o Jiu-Jitsu ajudou você a lidar com as ilusões e as pressões da fama?
No início da carreira como ator, é muito difícil a pessoa não mudar. Vi pouquíssimos que continuaram igualzinhos ao que eram, na verdade é até normal a pessoa agir diferente. O mundo muda à sua volta. Surgem muitas oportunidades diversas, várias portas se abrem na sua frente e é complicado saber em qual entrar e quais evitar. Sempre mantive a cabeça fria e, na dúvida, jamais ultrapassei as portas que julgava perigosas. Quando a fama chega de repente, traz muitas armadilhas. Meu sucesso atual se deve muito às portas certas que escolhi. Acho que a faixa-preta de Jiu-Jitsu me ensinou isto, que o caminho é sempre longo. Com o Jiu-Jitsu creio que aprendi a levar a vida profissional com cautela. É preciso ir devagar, com os pés no chão.
Você tem algum sonho, Cauã?
Um dos meus sonhos é interpretar o Rickson no cinema. Espero que role um dia.