Foi uma longa e saborosa conversa com o faixa-preta Guilherme Valente, o “Gui”, que atuou nesta reportagem especial como porta-voz do clã de professores de Jiu-Jitsu e hábeis empreendedores, a família que comanda a Valente Brothers Academy, em Miami, nos Estados Unidos.
Gui respondeu a todas as perguntas da equipe de GRACIEMAG de forma extremamente clara, objetiva e organizada, mostrando que é um profundo conhecedor das histórias, dos conceitos e dos personagens sobre os quais nos contou.
Faixas-pretas experientes, os irmãos Valente jamais se acomodaram em relação ao aprendizado do Jiu-Jitsu. Comportam-se cada vez mais como estudiosos dedicados, tanto na prática como na teoria, tentando desvendar todos os mistérios da arte suave.
Claro, também atualizam-se de acordo com as novidades que aparecem nos dojôs mundo afora e com a modernização na sociedade de uma maneira geral.
Ao longo dessa dinâmica infinita de aprender-ensinar-aprender-ensinar, tiveram acesso privilegiado a duas fontes fundamentais do Jiu-Jitsu, ainda em vida: os grandes mestres Carlos e Helio Gracie. E foi com eles que desenvolveram um astral espetacular, uma jovialidade contagiante, talvez uma das principais virtudes para explicar o sucesso dos Valente.
“Dentre todas as lições que aprendemos com Carlos e Helio Gracie”, recorda Gui, “podemos delinear as três principais:
Positividade: Manter a mente sempre positiva e encarar as situações da vida com inteligência e determinação para resolver os problemas que aparecerem. Saber aceitar aquilo que não se pode modificar sem se queixar.
Coragem: Ter a força de vontade para só fazer aquilo que considerar certo, mesmo diante de fortes tentações ou receios. Não ter nenhum tipo de vício e nem fraqueza.
Prestimosidade: Carlos e Helio consideravam a disposição para ajudar ao próximo uma das maiores virtudes de um ser humano. Por essa razão seus discípulos jamais poderiam passar por um lixo no chão e não catá-lo ou sair de um ambiente deixando-o mais sujo ou desorganizado do que quando entrou. Segundo eles, de nada vale o conhecimento do Jiu-Jitsu se for utilizado para fazer o mal.
Confira a seguir esses e muitos outros conceitos, propagados por Pedro, Gui e Joaquim no QG do clã Valente em Miami, e descubra por que a escola desses notáveis professores se tornou uma das grandes referências na difusão do Jiu-Jitsu na atualidade. Oss!
Como vocês definem o “Método Valente Brothers” de ensinar Jiu-Jitsu?
O nosso método foi formulado com o intuito de preservar a essência técnica e filosófica do Jiu-Jitsu, codificada no final do século 19 pelo fundador da Kodokan, Jigoro Kano, e tão bem aplicada no Brasil pelos grandes mestres Carlos e Helio Gracie.
Nós desejávamos, desde o início, transmitir aos nossos alunos o Jiu-Jitsu completo, abrangendo os golpes traumáticos, as quedas, o programa de defesa pessoal e a luta de chão, além da filosofia de vida que é, sem dúvida nenhuma, o elemento mais importante. Através de um trabalho psicológico muito profundo nós buscamos aumentar a autoestima das crianças e treinar pessoas comuns, de qualquer sexo ou idade, mesmo sem aptidões atléticas, a terem elementos para se defender dos mais fortes, em qualquer situação de confronto.
Desde as primeiras aulas, em 1993, entendemos a necessidade de desenvolver currículos para as aulas coletivas, assim como já existia para aulas individuais. Com base na nossa experiência acadêmica dentro de universidades americanas, organizamos um programa pedagógico estruturado para que os alunos tivessem acesso às técnicas do Jiu-Jitsu da forma mais eficiente possível. Tudo isso num ambiente de muita disciplina, organização, limpeza e pontualidade.
A Escola Valente Brothers é uma das escolas de Jiu-Jitsu mais bem sucedidas da atualidade. Muitos professores de outras escolas costumam visitar vocês em Miami, nos Estados Unidos, para aprender tanto a metodologia de ensino que vocês adotam, assim como o conhecimento empresarial que vocês desenvolveram ao longo dos anos.
Quais são as principais dicas que vocês costumam dar aos professores em relação a esses dois aspectos?
Em primeiro lugar enfatizamos o valor do trabalho. Consideramos a rotina de professor de Jiu-Jitsu fantástica. É um verdadeiro privilégio poder passar o dia inteiro no tatame, fazendo aquilo que amamos e contribuindo para a evolução física e mental dos nossos semelhantes de uma forma extremamente positiva. Não podemos entrar na aula pensando em nos aposentar ou em tirar férias. Isso não existe. Aprendemos com nossos mentores, os grandes mestres Carlos e Helio Gracie e o Dr. Pedro Valente, que a nossa profissão é a melhor do mundo e que devemos nos dedicar a ela com todo o nosso coração. Almejamos poder chegar a uma idade mais avançada com essa mesma rotina de passar o dia dando aulas.
Em segundo lugar, ressaltamos a importância da filosofia de vida do Jiu-Jitsu através do 753 Code. Desenvolvemos esse código com o intuito de poder explicar de uma forma didática a filosofia da nossa arte. O professor de Jiu-Jitsu tem a obrigação de ser um exemplo de conduta dentro e fora do tatame. Não podemos esquecer que o Jiu-Jitsu possui técnicas que podem ser letais. Portanto, devemos sempre inspirar no aluno um comportamento ético, voltado para a prática do bem. Além disso, os preceitos de alimentação e hábitos saudáveis sempre estiveram ligados ao Jiu-Jitsu e devem ser estimulados continuamente.
Em quais outros aspectos o legado dos grandes mestres Carlos e Helio Gracie, assim como o do Dr. Pedro Valente, influencia vocês?
O grande mestre Carlos, que conhecemos na nossa infância, foi sempre uma imensa fonte de inspiração dada a relação de grande amizade que ele mantinha com o nosso pai. Procuramos cultivar com muita fidelidade os seus ensinamentos filosóficos, higiênicos e nutricionais. O grande mestre Helio foi como um avô para nós. Tivemos não só o grande privilégio de poder tomar aulas particulares regularmente durante trinta anos diretamente com ele, mas também a convivência familiar que nos rendeu ensinamentos valiosíssimos. A forma como Carlos e Helio conseguiram captar, mesmo com pouco acesso, a profundidade dos preceitos filosóficos e técnicos da arte suave foi deveras genial.
Motivados pela admiração e pelo respeito que nutrimos pelos grandes mestres fizemos um minucioso trabalho de pesquisa sobre a atuação deles entre as décadas de 30 e 50. O foco na defesa pessoal e na filosofia que decidimos implantar em nossa academia é fruto não só da inspiração no trabalho dos irmãos Gracie na antiga academia da Avenida Rio Branco, mas também da participação consultiva dos nossos mentores, Helio Gracie e Dr. Pedro Valente, na gênese do nosso sistema.
Vale acrescentar ainda um ponto muito relevante disseminado pelo Dr. Pedro Valente. Nosso pai sempre ressaltou a importância da formação acadêmica em nossas vidas como ferramenta importante para o nosso sucesso.
“Uma dica valiosa que damos aos professores? Valorize o seu trabalho, é um verdadeiro privilégio passar o dia inteiro no tatame, fazendo aquilo que amamos e contribuindo para a evolução dos outros. Não podemos entrar na aula pensando em nos aposentar ou em tirar férias” Gui Valente
A realidade em termos de segurança social mudou muito, tanto no Brasil como nos Estados Unidos, desde que a Escola Gracie começou a ensinar defesa pessoal na primeira metade do século 20. Como vocês percebem isso e como a estratégia de defesa pessoal deve se adaptar a essas mudanças?
É impressionante como o programa que aprendemos com o grande mestre Helio continua sendo prático, eficiente e atual. É claro que como professores de defesa pessoal nós temos a obrigação de sempre estudar, não só as situações de briga de rua mais comuns, como também as armas mais usadas. Além disso, temos dado uma ênfase muito grande ao treinamento da defesa pessoal de uma forma dinâmica e realística.
Em 1999, com supervisão e aprovação do grande mestre Helio, desenvolvemos um curso de 27 aulas chamado Fighting Foundations. Foi o primeiro currículo de defesa pessoal de Jiu-Jitsu para aulas coletivas. O grande crescimento da nossa academia teve início com a implantação desse programa. Hoje em dia professores do mundo inteiro vêm à nossa academia com o propósito de aprender esse programa.
A evolução das armas de fogo também precisa ser considerada e as técnicas de defesa muitas vezes precisam ser adaptadas. O nosso trabalho com Forças Militares de elite aqui nos EUA nos possibilita uma troca de informações muito valiosa nesse sentido. Na nossa academia nós não só ensinamos técnicas de desarme, mas também oferecemos um curso completo de tiro prático. Conseguimos uma licença especial para usar a mesma munição não letal utilizada em treinamentos militares e policiais o que possibilita um treinamento muito realístico e dinâmico. O nosso irmão Joaquim é especialista nessa área e lidera esse programa.
Algum membro da família Valente já teve algum enfrentamento real em termos de defesa pessoal? Se ocorreu algo nesse sentido, como foi o resultado da reação?
Aprendemos com o grande mestre Helio, no auge da sua sabedoria, que a briga física só deve ocorrer em situação de defesa, seja pessoal ou de alguém que esteja sendo agredido. Ele considerava errado agredir alguém como forma de lição ou por vingança. Por isso, sempre buscamos evitar qualquer tipo de briga ou confusão. Porém, em algumas poucas ocasiões onde foi impossível evitar o confronto pudemos nos defender. Quando um praticante de Jiu-Jitsu se depara com um leigo, normalmente não encontra problemas para controlar a situação.
Em 2004, quando a nossa casa no Rio de Janeiro foi assaltada por cinco homens armados, o nosso pai colocou em prática toda a sua experiência adquirida na arte suave, não só no campo físico ao desarmar um dos bandidos antes de ser rendido pelos outros, mas principalmente no âmbito mental. Segundo ele, a filosofia do Jiu-Jitsu o ajudou a ter tranquilidade para colocar em prática a estratégia de manter os assaltantes constantemente distraídos. Desta forma ele diminuiu a possibilidade de eles praticarem alguma violência contra os filhos menores que lá estavam.
Após a ocorrência, a filosofia do Jiu-Jitsu ajudou a evitar que traumas relacionados a esse grave incidente pudessem impactar de forma negativa a vida não só do nosso pai mas também da Joana e do Joaquim. Inclusive, baseado na filosofia da positividade, o Joaquim enxerga aquela experiência como uma fonte inigualável de aprendizado que o ajuda muito no seu trabalho de professor de Jiu-Jitsu.
Realmente uma das questões mais complexas no ensino do Jiu-Jitsu é o aperfeiçoamento das instâncias emocionais, afinal, não adianta conhecer todas as técnicas se o emocional do praticante é frágil. Numa situação de enfrentamento real, é preciso controlar a adrenalina, raciocinar sob pressão, não sofrer “apagão”. Como vocês desenvolvem esses aspectos nos alunos?
A metodologia científica de ensino da academia Valente Brothers, aprendida com o grande mestre Helio, tem como objetivo automatizar as reações físicas e emocionais dos alunos. Ensinamos defesas e estratégias para neutralizar os ataques mais comuns que possam ocorrer em situações de violência urbana. O nosso sistema emprega técnicas da psicologia que visam à automatização dos movimentos de defesa para que o aluno não precise pensar antes de reagir. Com isso, medos e ansiedades não interferem na sua performance quando ocorre um ataque inesperado. O reflexo condicionado de defesa entra em ação.
Existem também as situações em que o indivíduo precisa manter o equilíbrio emocional para poder decidir a melhor forma de proceder. Nem sempre as técnicas físicas do Jiu-Jitsu são as melhores armas em situações de defesa pessoal. Em um assalto, por exemplo, onde não é possível reagir, você precisa ter controle emocional. E nos casos onde é necessário reagir, o equilíbrio proporcionará a capacidade de reconhecer o melhor momento para atacar. Tudo isso deve ser muito bem treinado, tanto fisicamente quanto mentalmente.
No campo mental nós ensinamos técnicas de visualização e mentalização para condicionar o lado psicológico. Também utilizamos treinamentos competitivos para criar situações de pressão física e psicológica. Nos treinamentos de luta, que realizamos regularmente em nossa academia, tomamos cuidado para não desenvolver reflexos antagônicos ao objetivo principal que é a eficiência numa situação de violência real.
O conhecimento filosófico e psicológico do Jiu-Jitsu também ajuda o praticante a ter um maior autoconhecimento, o que possibilita um entendimento das reações naturais do corpo em momentos de confronto. Os samurais já diziam que as mãos trêmulas e o coração acelerado não são sinais de medo ou de fraqueza e sim um aquecimento natural para a batalha. Nós acreditamos que é possível desenvolver a coragem e a valentia através do treinamento.
Vocês construíram um prédio 100% planejado para otimizar o ensino do Jiu-Jitsu. Quais são os principais destaques dessa construção sensacional?
A construção desse edifício é a realização de um sonho. O nosso crescimento como academia foi gradual e fundamentado em muito trabalho dentro do tatame. Começamos com aulas no ginásio da Universidade de Miami em 1993, tivemos uma academia de 185 metros quadrados de 1998 a 2002, depois conseguimos expandir para uma de 560 metros quadrados em 2003 e em 2017, após um projeto de quase quatro anos, concluímos a construção da academia atual.
O nosso edifício é exclusivamente dedicado ao ensino do Jiu-Jitsu. Nós concebemos esse local como um centro educacional que preserve a história e a cultura do Jiu-Jitsu. Organizamos um acervo histórico com museu e biblioteca para contar a história completa da nossa arte, de forma acadêmica, desde os tempos mais antigos até a Era Moderna. Desejamos que amantes da arte suave, independente de afiliação, venham a Miami a fim de aprender a técnica, a história e a filosofia da nossa arte.
Estamos muito felizes com a quantidade de visitantes de todo o mundo que tem nos prestigiado nesses dois primeiros anos de funcionamento. O Grande mestre João Alberto Barreto, que nos visitou no fim do ano passado, generosamente se referiu ao nosso edifício como a “Kodokan do Jiu-Jitsu”.
“Com base na nossa experiência acadêmica dentro de universidades americanas, organizamos um programa pedagógico estruturado para que os alunos tenham acesso às técnicas do Jiu-Jitsu da forma mais eficiente possível” Gui Valente
De que maneira a Escola Valente Brothers melhora a qualidade de vida dos alunos?
Como o nosso pai sempre dizia: “o maior segredo do Jiu-Jitsu é seguir a filosofia”. Com o aprendizado da filosofia entendemos que não vale a pena praticar o Jiu-Jitsu de uma forma que prejudique a nossa saúde física e mental. A prática do Jiu-Jitsu como atividade física pode trazer grandes benefícios para a saúde, contanto que seja executada de forma segura e equilibrada. Caso contrário, ela pode ser altamente danosa ao corpo humano, o que não é recomendável. Nós consideramos a nossa arte uma das modalidades mais saudáveis de exercício que existem.
Através do 753 Code os alunos aprendem estratégias específicas para desenvolver o comportamento ético, o equilíbrio emocional, a humildade e a saúde de uma forma geral. O impacto psicológico das nossas aulas na vida dos alunos é principalmente notado através do aumento da segurança e da autoconfiança. Porém, se essa autoconfiança não for estimulada em um ambiente disciplinado e respeitoso, ela pode se transformar em soberba e arrogância, o que seria terrível.
Nós levamos muito a sério a promessa de desenvolver corpo, mente e espírito através da prática do Jiu-Jitsu.
Como vocês analisam a vertente do Jiu-Jitsu voltada para a disputa de campeonatos?
Nós temos grande admiração por qualquer atividade esportiva que seja praticada de forma positiva e que contribua para a melhoria da qualidade de vida de seus praticantes. Os campeonatos tiveram um crescimento impressionante nos últimos anos e têm tudo para continuar evoluindo através da organização e da disciplina.
Quais são as principais virtudes de um aluno que se forma faixa-preta da Escola Valente Brothers de Jiu-Jitsu?
Em 2006 nós desenvolvemos aqui em Miami um exame de faixa-preta. Objetivamos através dessa prova assegurar que todos os nossos faixas-pretas tivessem um conhecimento técnico, histórico e filosófico do Jiu-Jitsu. Ademais, o candidato tem que demonstrar uma eficiência prática de combate, tanto no que diz respeito à luta de chão, quanto na luta em pé, o que inclui quedas, traumatismos e defesa pessoal. O exame não é uma formalidade. Muitos candidatos não passam e têm que esperar um ano para poder testar novamente.
O que esperamos de um faixa-preta é que seja, dentro e fora do tatame, um exemplo de integridade, sempre representando, da melhor forma possível, a filosofia do Jiu-Jitsu tão bem explicada pelos grandes mestres Carlos e Helio Gracie.