Do baú de GRACIEMAG:
Após um knock-down da vida, professor Ricardo Libório explicou para nossa equipe como o Jiu-Jitsu o ajudou a voltar a sorrir, ao ensinar alunos cegos a lutar.
[ Por Ricardo Libório * ]
Lembro até hoje do meu início no Jiu-Jitsu, ali pelo começo da década de 1980. Eu era um novato na equipe Carlson Gracie em Copacabana, e testemunhei vários caras de outras modalidades aparecerem na academia para testar o que era “aquele tal de Jiu-Jitsu”.
Eram lutadores de karatê na maioria.
Apareciam para um primeiro treino, um “confere” mesmo, e Carlson escalava sempre um de nós, novatos ainda, para dar conta do recado: uma hora ia o Murilo Bustamante, ou então eu, ou o Wallid, entre outros daquele monte de cascas-grossas novatos.
Os recém-chegados de fato não sabiam nada de chão, e eram desafios que nos faziam sentir na pele do que o Jiu-Jitsu era capaz, contra aqueles atletas bons de porrada em pé. A gente só botava para baixo e finalizava. Eram as preliminares do vale-tudo. E valia tudo mesmo.
Mais experiente, em 1996, lutei o primeiro Mundial de Jiu-Jitsu da IBJJF como faixa-preta, e tive a honra de vencer, nos lendários tatames do Tijuca Tênis Clube, a primeira medalha de ouro da categoria superpesado, a divisão de grandalhões de 100kg como os hoje consagrados Roger Gracie, Zé Mario, Bernardo Faria. Eu tinha cerca de 85kg.
E vocês sabem o que aprendi, após mais de 35 anos de Jiu-Jitsu? Que, muito mais do que vitórias inesquecíveis, o Jiu Jitsu nos ensina a perder. Sim, a perder.
Não estou falando em perder e gostar, em aceitar a derrota.
Você sempre tem de ir à luta com a intenção máxima de ganhar. Mas você precisa entender que pode perder, que pode batucar, e saber administrar o amargor da derrota.
O negócio é treinar pensando em superar o outro e, claro, se divertir um pouco. A lição é: treine duro, entenda o valor do sacrifício e supere as derrotas. E o principal: aprenda a adaptar essa filosofia para a sua própria vida fora da academia, pois só assim ela vai ficar um pouco mais fácil.
Há uns anos, houve um acontecimento que caiu como um meteoro na minha vida, um drama que ocorreu com a minha filha.
Precisei diminuir meu ritmo de viagens por conta disso, para cuidar dela. Olha, isso é uma das coisas pelas quais sou mais grato ao Carlson Gracie. Porque se eu não tivesse treinado Jiu-Jitsu com ele a vida toda, não escutasse ele falando no meu ouvido até hoje coisas como “Vamos lá, meu irmão! Segue em frente! Não desiste!”… Bem, eu talvez não tivesse segurado a barra do jeito que segurei.
A vida nos dá muita porrada, mas a filosofia de vida do Jiu-Jitsu, aliada ao fortalecimento do caráter, da integridade e honra, nos fazem continuar caminhando. Só sentar e começar a chorar não resolve.
No Jiu-Jitsu, a gente aprende a cada treino que é normal perder, e que se você perder e não desistir você ganha lá na frente. É só não desistir!
O que aconteceu foi que, quando era pequena, a minha filha ficou cega.
Foi uma porrada que entrou de repente, de uma vez só.
Quando minha filhota, Bella Libório, tinha apenas 1 ano e meio, os médicos começaram a suspeitar que havia algo errado em sua parte neurológica.
O motivo foi uma má formação: a parte mole do topo da cabeça dela havia fechado antes da hora. Com isso, o seu cérebro começou a crescer mas não havia espaço, o que comprimiu seu nervo ótico e causou sua cegueira.
Sabe o que é um professor de Jiu-Jitsu ficar sem chão? Foi o que ocorreu com a gente em casa.
Mas jamais me entreguei, apesar da dor – graças ao que aprendi com o Jiu-Jitsu e com Carlson, que sempre foi nossa grande inspiração, o grande herói de todos nós. Basta ver o número de discípulos que resolveram dedicar a vida exclusivamente ao esporte. Foi um grande mestre, em todos os sentidos.
Lembro dele dando uma dura na gente: “Parou de vir treinar porque bateu, meu filho?! Que homem tu és??”
O Jiu-Jitsu no fim das contas foi me ensinando aos poucos que você pode pegar uma coisa muito ruim e torná-la uma coisa ao menos positiva. A única atitude que você não pode ter é desistir.
Deixe a vida tomar seu curso e acredite num poder superior.
Foi o que aconteceu comigo a partir disso tudo. Tive contato com instituições que ajudam os cegos aqui nos EUA, e começamos a incentivar jovens cegos a treinar Jiu-Jitsu conosco na Flórida.
Passamos, então, a programar todo ano camps de verão para treinos de Jiu-Jitsu e outras artes marciais com mais de 15 crianças cegas. Num campeonato estadual por aqui, inscrevemos três garotos cegos. E dois deles foram campeões.
O Felipe e o George, inclusive, finalizaram competidores que enxergam e ganharam a faixa-azul. Isso é mais do que gratificante. Foi quando enfim compreendi que o Jiu-Jitsu pode ser a luz que falta a muita gente.
Após todo esse obstáculo na vida de minha família, percebemos que no fim das contas começamos a melhorar a vida de muitos outros jovens com problemas parecidos. Logo oferecemos Jiu-Jitsu, judô e grappling para jovens com deficiência visual aqui na Flórida.
Sabemos que, por ser cega, a Bella, que está com 11 anos, certamente vai sofrer bullying, o que aliás já aconteceu. Graças ao Jiu-Jitsu, porém, tenho total confiança de que ela poderá se defender naturalmente desse tipo de agressão, o que me deixa mais sereno.
Não vejo nenhum esporte mais perfeito para deficientes visuais do que o Jiu-Jitsu, com e sem kimono. Uma das razões: graças à necessidade do contato e da pegada o tempo todo, você não precisa da visão para praticá-los.
Claro que ensinar um deficiente visual não é simples – o professor não deve esperar que os alunos vão entender tudo só ouvindo, mas imagine o quão fácil é para um deficiente visual lutar, sentindo o equilíbrio no chão e segurando no oponente o tempo todo.
Depois do que houve com a Bella, mudamos todos. Literalmente: deixamos Coconut Creek, também na Flórida, e fomos morar em Orlando, onde a educação para crianças cegas é uma das melhores e mais respeitadas dos EUA, e consequentemente do mundo.
Após a mudança de lar, dei outra guinada na minha vida profissional, ao deixar a American Top Team que ajudei a fundar por discordâncias com meu ex-sócio.
Como o Jiu-Jitsu novamente me ensinou, não havia tempo para lamentação: bola para frente sempre.
Hoje, meu principal foco é ser consultor para professores e administradores de equipes de artes marciais, da Arábia Saudita ao Brasil. Há muitos faixas-pretas talentosos que montam seus times sem ideia de como geri-los.
É aí que eu entro, com minha experiência e a de outros consultores que trabalham conosco.
Para melhorar, fui convidado pela Universidade da Flórida Central, considerada a segunda maior universidade pública do país, com mais de 65 mil alunos, para dar aulas teóricas e práticas de Jiu-Jitsu.
Foi uma ideia que veio dos próprios alunos, e é um desafio que me honra e muito: vou ensinar na sala de aula mesmo, e espero que a ideia se espalhe pelos EUA, Brasil e pelo mundo.
O segredo de ser bem-sucedido no Jiu-Jitsu no fim é o de sempre: muito esforço e total confiança nas suas ideias.
Trabalho desde os 13 anos, sei o que é persistir. Nos EUA, para completar, há uma ciência de negócios que ajuda demais. Existe inclusive uma Martial Arts Business Association que vive somente de criar ideias e sistemas para que os microempresários e donos de academias sejam bem sucedidos.
Outro ingrediente nosso foi acreditar que o MMA e o Jiu-Jitsu são esportes coletivos.
Quando você vê um campeão no pódio ou com um cinturão, entenda que aquilo não foi o trabalho de uma só pessoa. Isso é impossível.
Aquele atleta tem muito a agradecer a outros companheiros. Tem todo um suporte, de treinadores, da administração, responsáveis por cuidar diariamente de tudo. Sem um bom staff, o professor não se desliga da contabilidade, advogados, limpeza etc.
O Jiu-Jitsu reforça essa união. Pois o bom atleta entende que precisa do técnico o tempo todo, porque é uma profissão muito emocional, é normal o lutador ficar muito sensibilizado antes das lutas.
Há todo um sofrimento que tem de ser acompanhado com um suporte emocional, espiritual até, e não apenas pelo lado técnico e tático. Ter sucesso na luta é reflexo do companheirismo e do trabalho de todos.
Um dos grandes exemplos que sempre cito é o do Mike Brown, que começou trabalhando na portaria da ATT e se tornou um astro do UFC e faixa-preta de Jiu-Jitsu.
Aos donos de academia, aconselho que cuidem bem do programa e da comunicação com o aluno. O faixa-branca precisa saber o que vai aprender, o que vai ser ensinado, de que maneira será ensinado e como aquilo terá um caráter educacional na formação das crianças.
Lembre-se que você não pode depender da bolsa do lutador para ser bem sucedido, porque uma época vai estar tudo no azul, e em outra época a coisa pode diminuir. A academia tem de estar bem estruturada, com filiais e um bom número de alunos.
Ensinar Jiu-Jitsu é um presente, e um privilégio. Repare que trocação e quedas você pode aprender em artes originárias de qualquer canto do globo – existe wrestling na Mongólia, existe striking na Índia, tem luta em pé em todos os cantos da Europa. Mas chão de alto nível, com guarda e finalizações eficientes, só o Jiu-Jitsu brasileiro.
Eu só não consigo entender como é que o Jiu-Jitsu ainda não está em todas as escolas, colégios e mesmo nas universidades do Brasil. Mas este dia há de chegar.
* O professor foi entrevistado por Marcelo Dunlop, com a colaboração de Nalty Junior.