Quer arrumar confusão entre seus familiares e amigos mais chegados, sem falar de política? Vai aí uma sugestão infalível. Reúna todos em volta de uma inofensiva mesa de bar, ou de uma casa de sucos, e pense num tópico apreciado por todos – pode ser MMA, futebol, automobilismo, cinema, música ou cuspe à distância. Em seguida, introduza o assunto: quem é o melhor de todos os tempos? Pronto. O furdunço está armado.
Tal tipo de discussão é marcado pelo subjetivismo e, seja qual for o tema, dificilmente haverá consenso. Pelé, Maradona ou Messi? Bill Russell, Michael Jordan ou LeBron James? Fellini, Kubric ou Tarantino? Jimi Hendrix, Jimmy Page ou Eric Clapton? Tudo vai sempre depender do critério e do gosto de quem escolhe. Os fãs mais clássicos hão de defender o legado dos que fizeram história no passado e assim foram consagrados; vão falar da dificuldade em ser original e pavimentar o caminho para as novas gerações. Sequer vão se mostrar abertos a discutir as realizações de novos expoentes, minimizando-as diante da importância dos feitos de seus ídolos. Para estes, Pelé será sempre o Rei, independentemente do que aconteça nos próximos 2 mil anos de futebol.
Os mais novos e impressionáveis costumam votar em seus contemporâneos. Exaltam a superioridade física, técnica ou tecnológica atual e são capazes de desprezar o contexto histórico em que os antigos ícones atuavam. Para estes, Pelé não teria velocidade e preparo físico para competir com o ritmo do futebol atual e ficaria à sombra do argentino Messi se jogassem no mesmo time.
Há, ainda, os que foquem em números absolutos para defender seu ponto de vista. Apegando-se a critérios puramente objetivos, fica difícil questionar Michael Schumacher e seus sete títulos mundiais de automobilismo, ainda que os oponentes do alemão fossem inferiores ao nível de competição que enfrentavam Senna, Prost, Mansell e Piquet.
Outros, por fim, ainda vão se concentrar na beleza ou no grau de dificuldade das conquistas. Para estes, o elemento qualitativo (difícil de definir) superaria o raso quantitativo. Vale muito mais o trabalho imortal de Alfred Hitchcock do que os dois Oscar de melhor diretor de Alejandro González Iñárritu.
Percebeu o nível da dificuldade, caro leitor? Por isso evito cair nessa pilha de apontar o melhor de todos, como a mídia apressou-se a fazer novamente após o UFC 214, quando Jon Jones sobrou contra Dan Cormier, com um lindo nocaute. O feito deu-se no fim de julho. Em agosto, surgiu a notícia de que Jon Jones lutara dopado, e os analistas se recolheram, assobiando. Quem estava certo, contudo, era o grande estudioso Albert Einstein, que provou que tudo é relativo. De fato, não dá para falarmos em melhor lutador da história do esporte sem, ao menos, ponderarmos as virtudes e defeitos dos principais mitos da modalidade. E aí sim poderemos aprender com eles, a quem eu chamo de “Os quatro grandes”. Ei-los, a seguir.
Fedor, o imperador combalido
O russo Fedor Emelianenko, conhecido como “O Último Imperador”, foi o maior campeão do Pride Fighting Championship e é o atleta mais dominante da categoria peso pesado da história do MMA. Numa divisão de peso onde até um golpe de raspão é capaz de abrir rombo em parede, é um feito homérico permanecer invicto durante mais de nove anos. Se formos falar em números, Emelianenko venceu 27 lutas durante este período (mais lutas do que Jon Jones tem em sua carreira, por sinal).
Se formos avaliar a magnitude dos combates, precisamos considerar que Fedor é pequeno e gordinho se comparado aos gigantes que abateu. Estamos falando de uma época em que os anabolizantes eram consumidos sem qualquer controle, tornando os pneus proeminentes do russo uma verdadeira medalha de valor. Emelianenko encarou e superou todas as ameaças que ousaram atravessar seu caminho: os chutes mortais de Mirko “Cro Cop” Filipovic, o então invencível Jiu-Jitsu de Rodrigo “Minotauro”, o suplê inacreditável de Kevin Randleman e o ground and pound do campeão do Pride GP Mark Coleman, entre outros riscos. E ainda mostrou queixo e coração, no duelo em que recuperou-se após quase ser nocauteado em pé pelo japonês Fujita.
Em seu desfavor, contudo, pesam o fato de não ter lutado no UFC e não ter avaliado quando encerrar a carreira. No início dos anos 2000, os desafios no Pride eram superiores aos da organização americana. Todavia, com o fim do evento japonês, muitos acreditam que Fedor deveria ter se provado e conquistado o cinturão do UFC para se garantir indiscutivelmente como o melhor da história. Essa impressão só piorou quando, em 2010, Fabricio Werdum tirou a invencibilidade do Imperador com aquela chave de braço do triângulo que chocou o planeta – sua primeira derrota desde 2000.
Seguiu-se então uma sequência de derrotas pungente, para o limitado Antonio “Pezão” e para o bem menor Dan Henderson; um punhado de vitórias sem brilho, contra oponentes como Fábio Maldonado, e por fim o nocaute sofrido em pouco mais de um minuto contra o simplório Matt Mitrione. O crepúsculo da carreira de Fedor tende a manchar seu legado e cada derrota desnecessária o coloca um passo mais longe do trono, na visão de seus detratores.
Anderson, o gênio dançarino
Se o critério for beleza e ineditismo dos feitos, Anderson Silva é de fato o maioral. O brasileiro é o mais inventivo gênio a calçar as luvas de duas onças. Fintas e esquivas cinematográficas, socos e chutes precisos, movimentos arriscadíssimos e impensáveis. Anderson trouxe tudo isso ao octógono como jamais foi feito. Um verdadeiro artista, o Da Vinci da pancadaria.
Além de ainda ser o lutador com maior número de vitórias consecutivas (16) e o campeão com o maior número de defesas de cinturão consecutivas (11) no UFC, Anderson não se contentava em apenas vencer. Ele verdadeiramente dava espetáculo. Cada vez que o “Aranha” baixava os braços e se esquivava dos socos inimigos, o coração do público disparava. Quando contragolpeava com precisão e vencia, os espectadores deliravam. E ainda por cima, 14 de suas 17 vitórias no UFC foram por nocaute ou finalização, estabelecendo mais um recorde que permanece. Ele dava aos fãs o que eles queriam e os surpreendia com algo que nem sabiam que queriam. Momentos como o chute frontal contra Vitor Belfort e as esquivas contra Forrest Griffin serão eternamente contados em prosa e verso nas antologias do esporte.
Muito do que gera argumentos para não tê-lo como o maior atleta de todos os tempos advém do jeito difícil e egocêntrico com que Anderson se portou, especialmente no auge de sua carreira. Com o tempo, Silva passou a escolher demais seus oponentes, criar dificuldades para fechar contratos, atuar de maneira excessivamente desdenhosa, lutar parecendo estar desmotivado. Nas vitórias contra Patrick Coté, Thales Leites, Demian Maia e Nick Diaz, Anderson parecia estar deliberadamente com o freio de mão puxado, a ponto de exasperar o público e a organização do evento. Na derrota para Chris Weidman, o brasileiro exagerou na autoconfiança e nas provocações, a ponto de errar em sua especialidade e ser nocauteado. A confiança o engrandecera e a soberba o derrubara.
Outra crítica recorrente é acerca da fragilidade de seu jogo de wrestling. Anderson era excepcional em manter a distância de seus oponentes usando esquivas e sua envergadura. Mas não se pode dizer que tinha um jogo completo em todos os aspectos do MMA, sofrendo grandes dificuldades para se defender e levantar das quedas aplicadas pelos bons wrestlers que enfrentou (casos de Henderson, Sonnen e Cormier). Estariam os críticos se excedendo ao exigir perfeição de um lutador que já era sobrenatural em seus pontos fortes?
GSP, o completo estrategista
Se o melhor lutador do mundo for aquele com o jogo mais completo e equilibrado em todos os aspectos do MMA, teríamos de coroar Georges St-Pierre. Aprimorando-se visivelmente durante o decorrer de sua carreira, o peso meio-médio canadense alcançou um patamar em que não se via falhas no seu jogo.
Tal polivalência permitiu que Georges se tornasse o supremo estrategista do esporte. Se o oponente era um wrestler, St-Pierre mantinha a luta em pé e jabeava intensamente. Se o oponente era um striker, ele encurtava a distância, derrubava e anulava o pobre desafiante. Com isso, conseguiu a impressionante marca de 19 vitórias no UFC (ele é o segundo em quantidade de vitórias na organização). Tudo muito planejado, quase matemático. GSP vingou com autoridade as únicas duas derrotas que sofreu (para Matt Hughes e Matt Serra) e venceu os maiores nomes da categoria meio-médio, incluindo lendas como Hughes e BJ Penn (em seu auge).
Apesar de tudo isso, já vinha sendo notada em St-Pierre uma falta de gana em assumir riscos em nome do espetáculo. Desde a vitória contra BJ Penn em 2007, suas lutas estavam cada vez mais metódicas e monótonas. Esse estilo burocrático afastou alguns fãs e a falta de gana quase lhe custou a vitória contra Jonny Hendricks. Como dizia o poeta, que me perdoem as feias, mas beleza é fundamental. Para seus críticos, as lutas feias e pragmáticas impedem que o faixa-preta canadense use a coroa com a realeza que o posto exige.
Jones, o destruidor autodestrutivo
E enfim chegamos a ele, o craque invicto que bem poderia ser o favorito absoluto ao título de soberano do MMA. Jon “Bones” Jones é, apesar de tudo, o campeão mais jovem e assustador da história do UFC. Jones parece não ser humano, mas algo construído para ser o lutador perfeito: alto, forte, veloz, dono de reflexos impecáveis e da maior envergadura do UFC; e além de tudo pronto para disparar socos e chutes eficientes, um excelente wrestling, finalizações justas e um QI de luta elevado.
No Octagon, Jones não se afoba, não se assusta, não se arrisca desnecessariamente e, salvo raras oportunidades, jamais foi verdadeiramente ameaçado pelos seus adversários. OK, isso ficou parecendo a descrição do Chuck Norris, mas é verdade. Ele realmente “limpou” a categoria meio-pesado do UFC, transformando-a de uma das mais disputadas no esporte para uma terra arrasada onde poucos se arriscam.
Perto de completar dez anos como profissional, Jones conta uma única “derrota” em sua carreira, na verdade uma desclassificação por golpe ilegal contra Matt Hamill. Portanto, podemos dizer que Jones jamais foi vencido por outro atleta. De fato, o grande inimigo de Jon Jones é ele mesmo.
O campeão que podia ser incontestável se envolveu em lamentáveis escândalos com drogas, dopings e crimes dignos das páginas dos tabloides mais sórdidos. Jones, sob influência de drogas, bateu no veículo de uma mulher grávida e fugiu sem prestar socorro. Teve problemas recorrentes no antidoping por uso de cocaína e de substâncias proibidas. Desastres que lhe acarretaram longos períodos de suspensão, a perda do título e dúvidas constantes acerca da influência do doping em suas performances. Por fim, ainda é visto por muitos como um lutador desleal, devido a golpes direcionados aos joelhos e dedadas nos olhos.
Os próprios atributos de Jones também o afastam da preferência como melhor de todos. Primeiro, por não colecionar desafios emblemáticos, nos quais sofreu riscos reais e os superou – o único duelo tenso foi contra Alexander Gustafsson. Segundo, por sua disciplina extrema, o que o impediu de se arriscar em lutas monótonas que poderia ter definido com autoridade (casos das lutas com Rashad Evans, Ovince St-Preux e Glover Teixeira). Sempre parecia faltar aquele algo a mais, aquilo que anima o esporte, aquilo de que são feitas as lendas.
Em seu retorno ao UFC, no último dia 29 de julho, Jones parecia estar querendo vencer até mesmo esses últimos questionamentos. Enfrentou o duríssimo Dan Cormier, contra quem tinha uma verdadeira animosidade e que vinha motivado, fazendo contra Jones a melhor luta de sua carreira – até o momento em que Jones despertou. Aproveitando-se de um rápido instante em que Dan abaixou-se para golpear, Jones desferiu uma estrondosa canelada na cabeça de seu oponente. Ao ver Cormier cambaleando, “Bones” avançou como um tubarão que sente o cheiro de sangue, atacando até a interrupção do juiz. Uma vitória aparentemente incontestável, contra um oponente perigoso, definida com um lance de genialidade. E ainda com direito a uma cereja no bolo: o belo discurso da vitória, exaltando os méritos do adversário, mostrando enfim a maturidade nunca antes vista, e até sinalizando uma possível mudança para o peso pesado – onde poderia provar ser o mito inconteste do esporte.
Mas teria Jones vencido mesmo seu “passageiro sombrio”, como o personagem Dexter define seu lado tenebroso? Eis que, menos de um mês depois, a Usada anunciou que o campeão teria sido flagrado em teste antidoping para o UFC 214. Novamente uma enorme mancha se coloca entre Jon Jones e a supremacia do MMA. Quem sabe pela última e definitiva vez.
Como vimos, existem argumentos a favor e contra cada um dos postulantes. Entretanto, ao contrário do velho artilheiro mineiro Dadá Maravilha, viemos com a problemática, mas não com a “solucionática”. Cabe a você, amigo leitor, definir quem é o melhor de todos os tempos e defender com luvas e dentes sua escolha, na próxima confraternização com os amigos e em emails para nossa redação, no endereço enquete@graciemag.com. Afinal, quem foi o “cara” no MMA? Com a palavra, o sábio leitor.