Ele coleciona feitos inéditos no Jiu-Jitsu, mas não teve uma origem muito diferente da de incontáveis faixas-azuis pelo mundo. Nas encruzilhadas, porém, sempre escolheu o caminho certo, como este artigo publicado após o Mundial 2009, em GRACIEMAG, conta ao leitor.
Com 27 anos, o lutador tem olhos castanhos e cansados. Roger Gracie é o faixa-preta mais comentado do momento, invicto há um ano, tendo finalizado todos os seus oponentes em 2009. Hoje, é cobiçado pelos eventos de MMA.
Sua voz, porém, contrasta com a melhor fase de sua carreira. Ele fala baixo, num tom cansado, pouco satisfeito. Há três semanas, encontrou um rival à altura de seus 1,93m e 98kg. E agora conversa com GRACIEMAG, depois de enfim tê-lo posto para dormir.
Ver o pequeno Tristan Gracie no colo do campeão é uma grata surpresa. Grandalhão, o pai de primeira viagem é jeitoso com o filho. Adaptou as pegadas para o novo desafio. Brincou-se, no Mundial da Califórnia, em junho de 2009, que Roger finalizou seus nove adversários rapidamente só para voltar a tempo do nascimento.
Tristan chegou com 59cm e 4,1kg e retribuiu o carinho com muitas horas sem dormir, enganando a mãe Anna e o pai que, na luta de chão, raramente é ludibriado. “Trabalhoso, viu. Quem me falou que recém-nascido só come e dorme me enganou direitinho”, Roger diz, comentando que precisou adiar para setembro ou mesmo outubro a luta de MMA que faria no Strikeforce americano, a terceira de sua carreira, a primeira fora do Japão.
“Treinar muito, comer muito e descansar muito” é o lema que o Gracie repete há anos, uma rotina que a chegada de Tristan alterou completamente. Mas também não há mistérios ou grandes viradas na trajetória do bicampeão mundial absoluto, cujos números podem jamais ser batidos.
Como muitos garotos, pegou a faixa-azul como um juvenil considerado “mediano para fraco”, segundo uns amigos. Para outros, ele era além disso “molenga” e “desengonçado”. “No futebol, no surfe e com as meninas”, termina de detonar outro.
A mudança de mentalidade de Roger em relação ao Jiu-Jitsu, a primeira encruzilhada que encontrou na carreira, foi, como em tantos casos, na faixa-azul mesmo. Seu tio e professor Carlos Gracie Jr, um de seus principais mentores ao lado do primo Renzo e do tio Rilion, justifica: “Isso acontece com todos, na faixa-branca a maioria é criança, e encara como brincadeira. É na faixa-azul que o jovem como Roger começa a ganhar consciência e noções de valores – e a pensar no que quer do futuro, em quem se inspirar e o que quer ser na vida”.
O fato de ter sido um iniciante magrelo, ainda por cima, foi útil. Talvez, se Roger fosse um adolescente forte, seu jogo hoje seria bem diferente… A razão é simples: na academia ele não podia se defender na força, e teve que se virar na base da técnica, caso contrário não sobreviveria. Acabaria desistindo. Mas ele pegou o caminho certo novamente.
O Gracie começou a andar na trilha do sucesso ali pelos 15, portanto. Num episódio que ele mesmo considera crucial para seu desenvolvimento, Roger viveu uma época em que percebia sua evolução – o que se transformava em motivação e vontade de continuar trabalhando duro. “Eu estava gordinho e fui passar um tempo com Rilion no sul do Brasil, em Florianópolis. Lá meu tio me pôs na dieta, me fazia correr toda manhã e eu treinava todo dia com o Rolles. Eu sentia a melhora, via os benefícios. Não parei mais”, lembra.
A boa forma, a técnica e a motivação foram testadas no retorno ao Rio, em 1999. Na seletiva para o Mundial, Roger voltou com a guarda afiada e estava vencendo. Até que, após raspar um oponente três vezes, abrindo confortáveis 6 a 0, ele nem entendeu quando o rival voou e aplicou um mata-leão no seu pé, estalando tudo – um golpe que hoje nem é permitido entre juvenis.
“Fiquei revoltado comigo mesmo”, diz ele, com o jeito pacato de sempre, as narinas dilatando-se antes de falar, sinalizando se o que virá é um sorriso ou uma resposta séria.
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No Mundial 2009, realizado na Pirâmide de Long Beach, onde fez sua última e mais impressionante exibição, Roger deu pistas de como encara as derrotas. Em toda carreira, das cinco vezes em que ele deixou o ouro escapar, três foram causadas por quedas. Ele não ficou nada feliz com elas. Mas, logo após levar uma queda perfeita de Claudio Calasans, na semifinal do absoluto, quando precisou (como de costume) virar uma luta, Roger fez piada: “Se eu não tomo uma queda perde até um pouco da graça”, sorriu ao repórter.
É sorrindo também que os adversários tentam encontrar uma saída para vencer Roger, ou ao menos não bater. “Houve vários grande lutadores, dentro e fora da família. Mas o que Roger está fazendo nunca ninguém fez. Ele tolhe a defesa inimiga, deixando o indivíduo em situações indefensáveis”, ressalta Carlinhos Gracie.
De fato, em 2009 foram cinco estrangulamentos de gola, uma guilhotina e três asfixias conhecidas como ezequiel, quando se usa a própria manga do kimono – sendo que Roger avançava para passar e montar sem retroceder um centímetro sequer. “Além da técnica e de uma distribuição de peso perfeita, me senti um anão ao lutar contra ele”, diz Bruno Bastos.
Para Ricardo “Demente” Abreu, seu carrasco na final do peso super-pesado, o Gracie é “muito justo e não erra. Ele não dá um espaço sequer nem a chance de você buscar uma posição confortável para tentar fazer seu próprio jogo”. O que mais impressiona Rômulo Barral, o amigo e vítima na final do absoluto, é a passagem de guarda de Roger. “Ele sabe travar o quadril do oponente como ninguém. Eu sabia o que ele queria, eu entendia que não podia dar aquele espacinho, mas ele conseguia. E minha defesa do estrangulamento, que funciona com todo mundo, não o atrapalhou em nada, não sei por quê. Desconfio que é automático para ele”, diz Barral, que o retardou por 9m31s.
Peso, altura, envergadura… Ótimos ingredientes. Para seus mestres, porém, a mente é o que faz Roger ser o que é, exibir a técnica que possui, e não ser finalizado desde a faixa-azul, portanto há mais de cem lutas. Uma cabeça e um caráter moldados não apenas nas dezenas de campeonatos que disputou, mas especialmente nos treinos, nas encruzilhadas diárias na academia.
Como na noite em que Roger foi à Gracie Barra, no Rio, cansado para treinar. Nem os amigos ou professores o convenciam. Pois bastou o tarimbado Alexandre “Café” Dantas aparecer de surpresa, para que Roger desaparecesse e voltasse num piscar de olhos, com kimono. Queria se testar contra um cara duríssimo que não estava sempre disponível, pois treinava em Ipanema. “As pessoas tendem a escolher um pouco o treino, e fugir do treino duro. Roger sempre fez o inverso. Buscava o adversário duro, ia atrás do desafio, da disputa. Sua força de vontade era maior que o temor, que a vaidade de perder um treino para quem quer que seja”, arremata Carlinhos.
Ocorre que Roger não se permite ficar satisfeito. Pode ter a guarda mais temida do mundo, a montada mais fatal do Jiu-Jitsu, não interessa: “Acho que o pessoal hoje em dia fica satisfeito em não ser raspado, ou em ter um único jogo mais forte apenas. Eu não”.
E onde se forja uma mentalidade assim? No caso de Roger, foi em casa. Seus maiores incentivadores sempre foram a mãe Reila Gracie e o pai Mauricio Gomes, divorciados há anos. E, enquanto a mãe o alimentava com carinho e histórias do avô Carlos, o pai e mentor também procurava ensinar um pouco sobre a vida, botando o joelho na barriga do pequeno Roger como forma de brincadeira.
É bom se preparar, pequeno Tristan.