
Royce contra Ken Shamrock no UFC 1. Fotos: Susumu Nagao
Hoje o fã do Jiu-Jitsu vê o gesto até como certa heresia. Afinal, como imaginar que Royce Gracie, hoje uma estátua viva que anda, poderia ser recebido com vaias no Octagon?
Mas, de fato, aconteceu, e por razões cristalinas. Mais do que um Davi no meio de uns 15 Golias com socos de derrubar camelos, o filho de Helio Gracie era, ali nos primeiros eventos, encarado como um forasteiro abusado, que ousava enfrentar e despachar os favoritos da torcida – os americanos. Como se não bastasse a audácia, o faixa-preta de 27 anos, “com um kimono impecável, como se recém-saído da lavanderia” (Fellipe Awi, em “Filho teu não foge à luta”) ainda fez pior: lutava no chão, sem chutes giratórios, sem socos nem sangue.
A constatação da birra com Royce está numa crônica curiosa, encontrada nos becos escuros da internet. Escrita pelo surfista e correspondente Carlos “Califa” Sarli, um dos fundadores da revista “Trip”, foi publicada no jornal “Folha de São Paulo” em 1994:
“Quinta-feira passada eu estava na casa do Paulo Lima, editor da revista ‘Trip’. Iria embarcar no dia seguinte para o Havaí. Estávamos numa reunião e tínhamos outra agendada para as 15h. Pego uma revista americana sobre artes marciais, a ‘Black Belt’, e vejo o artigo sobre o primeiro Ultimate Fighting Championship. Fiquei instigado. O Paulo me traz o catálogo da segunda versão do evento, que aconteceria no dia seguinte em Denver, Colorado. Tomei a decisão. Liguei para a United Airlines e antecipei meu embarque.”
Sarli não fazia ideia do que ia encontrar, e deixou claro seu choque, durante a revolução do vale-tudo, o evento que mudou a história das artes marciais e do Jiu-Jitsu. Mas deixe que o Califa conte:
“Em Denver, o Mannoth Event Center estava lotado. A primeira luta já havia começado. O público delirava quando os competidores trocavam socos e pontapés e vaiava quando eles iam para o chão, grudados, tentando a imobilização. Ficava mais difícil de entender o que estava rolando –literalmente– e também de assistir.
“O UFC II contava com a participação de Royce Gracie, brasileiro, faixa-preta de Jiu Jitsu quarto grau e vencedor da primeira edição do evento. Sem regras – a não ser a proibição de dedo no olho e mordidas – sem juízes e sem tempo determinado, o evento teve critério de simples eliminação. Dos 16 lutadores selecionados entre os melhores do mundo –Japão, França, Espanha, Holanda, EUA e Brasil– sobraram quatro, depois dois e, finalmente, o ‘ultimate’, o melhor.
“O clima tenso no ginásio só era quebrado quando duas garotas de biquíni passavam apresentando as modalidades do próximo embate, no mais autêntico estilo de boxe. Algumas lutas tingiram com sangue o piso do ringue octogonal. Outras exigiram a presença dos paramédicos para levantar o derrotado. Até o final, a única unanimidade foi Pat Smith, 30, lutador americano de kickboxing de Aurora, Colorado – local, portanto.
“Royce não contava com a simpatia do público. Suas lutas foram as mais rápidas e sempre no chão. Por duas vezes seus oponentes levantaram, mas logo vinha o golpe de misericórdia. Uma chave de pescoço ou algo parecido obrigava o valente a bater no chão.
“Com a torcida e o tamanho a seu favor, Smith foi para final com Royce. Tentou nos primeiros segundos golpeá-lo com chutes e socos, mas logo o brasileiro ‘entrou’ nele e, em apenas um 1min17s, o embate estava definido. Royce Gracie ficou com o título máximo e US$ 60 mil mais rico. Apesar de não estar entre os considerados ‘esportes de ação’ –que costumo cobrir na coluna – ação é o que não faltou. Valeu a pena a correria.”
A crônica podia ser chamar “Royce repete feito”, “A revolução”, “Lona tingida de sangue” ou “A descoberta do Jiu-Jitsu”. Mas Sarli estava ainda mais inspirado e lascou lá o título: “Sopa de tamanco”.
Em tempo: o finalista Pat Smith também competira no UFC 1, tendo sido despachado pelo compatriota Ken Shamrock, na primeira fase do UFC 1, também em Denver.